Qual o papel da mídia na legitimação do machismo gaúcho?
Crescemos sem aprender a questionar a representação cultural baseada no mito do gaúcho, e a tomamos como gentílica de forma automática. Mesmo quando pensamos que não somos pessoas do campo, nem da região da campanha, vem o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) e nos consola, com um discurso unificador que abarca a diversidade cultural e social da região. Assim, é possível ser gaúcho fronteiriço, gaúcho colono, gaúcho negro... só não pode ser gaúcho gay.
A mídia foi a grande responsável pela consagração do gauchismo. Até a metade do século XX não havia este fenômeno que guia o parecer-ser sul-rio-grandense. Foi regionalizando a indústria cultural que produzimos esta identidade. Aprendemos a parecer-ser gaúchos consumindo discos, assistindo à televisão, comprando a pilcha da moda, etc. Mas não racionalizamos este sentido pragmático e utilitário da cultura de massa. Cremos, sim, no discurso idealizado do MTG, para quem estes “costumes” fazem parte de uma tradição herdada de nossos antepassados.
O jornalismo há décadas “comprou” este discurso tradicionalista de herança cultural. A cada semana farroupilha, data áurea da representação gauchesca, nós repórteres entrevistamos crianças que são levadas pelos pais a desfiles cívicos, bailes, CTGs e acampamentos. Elas ficam lindas nas fotos e na tela, de bombacha ou vestido de prenda (não ousemos confundir os gêneros). Daí escrevemos: “é a tradição passando de pai pra filho”. Nunca perguntamos: o que é tradição? Que valores esta “tradição” carrega?
Até hoje na mídia do Rio Grande do Sul, ignoramos ou não demos muita saliência para as contradições e incongruências do gauchismo. Num exercício contínuo de eufemismo, consideramos como bravateiro um modelo sócio-cultural que na verdade se constituiu violento e conservador. Refiro-me aqui à institucionalização do mito e ao imaginário contemporâneo sul-rio-grandense, à revelia de outras versões mais libertárias oferecidas pela literatura gauchesca.
Em pesquisa conduzida pelo pesquisador Tau Golin na Universidade de Passo Fundo entre 1997 e 2000, foi produzido um ranking das músicas mais tocadas nas rádios da cidade, com temática ligada ao gauchismo. Destacaram-se “Não Chora, China Veia” (Garotos de Ouro) e “Criado em Galpão” (Os Serranos). Analisando as letras destas canções ficou evidente uma estética comum de relacionamento, baseada num modelo animalesco, machista e violento.
Versos como “Não chora, minha china veia, me desculpe se eu te esfolei com as minhas esporas” e “uso uma bombacha larga com feitio do melhor pano, e um trinta ao correr da perna, com um palmo e meio de cano” foram entoados exaustivamente na programação de cinco rádios. Outra que merece destaque é a música símbolo do município: “Gaúcho de Passo Fundo” de Teixeirinha. Entre os versos que identificam o passo-fundense oficialmente estão: “Eu sou gaúcho lá de Passo Fundo, trato todo mundo com muito respeito, mas se alguém me pisar no pala, meu revolver fala e o bochincho está feito”.
Heróis valentes?
Este modelo é justificado, de forma diletante, na história. A versão mítica da Revolução Farroupilha é o principal alimento do imaginário gauchesco. A infâmia farrapa, traidora de negros e sanguinária (conforme Juremir Machado da Silva), é escondida atrás de ideais humanistas de liberdade e igualdade. E esta versão se legitimou ao longo dos anos porque nós jornalistas entrevistamos tradicionalistas para falar do tema, não historiadores. Ou, nas questões mais polêmicas, colocamo-los lado a lado, como se fossem debatedores equivalentes.
Talvez por uma característica própria do jornalismo, de ter que lidar com a imprevisibilidade dos acontecimentos, há o predomínio de pautas ligadas a uma agenda de eventos previstos. Assim, para o teórico Nelson Traquina, a ênfase editorial está em acontecimentos, não nas problemáticas. E quando há conflitos latentes, tende-se a tratar de forma bipolar, pois é mais simples colocar dois lados em oposição (bem contra o mal) do que entender e explicar ao leitor um fenômeno controverso.
Desta forma o MTG construiu uma relação habitual de acesso ao campo jornalístico. Ao longo dos anos, os tradicionalistas foram se tornando fontes imbuídas de autoridade e credibilidade, com intensa produtividade. Os inúmeros eventos gauchescos conquistaram preferência na cobertura, por reunirem uma gama de velores-notícia, como fator local, freqüência, legitimidade da fonte, disponibilidade da cobertura, e por se enquadrar na esfera do consenso (construído, mas real).
Agora, temos que reconhecer que há um conflito no fazer jornalístico, nas questões geradas pelo tradicionalismo. Os fatos e coberturas recentes evidenciam isto. Quando um casal homossexual sofre discriminação por querer casar dentro de um CTG, e este é incendiado, o tradicionalismo deixa de ser o desfile bonitinho das crianças pilchadinhas, para revelar sua face arbitrária e preconceituosa que em meio século de organicidade já inoculou um ethos estancieiro e conservador no imaginário sulino (parafraseando Tau Golin).
Nesta hora, como ficamos nós jornalistas, guardiões da democracia? A defesa dos Direitos Humanos está expressa no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, como um dever. Assim como opor-se ao arbítrio e ao autoritarismo, e defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias (!).
Portanto, se é dever ético-profissional do jornalista defender os Direitos Humanos, precisamos entender e nos posicionarmos criticamente em relação ao gauchismo, enquanto modelo das relações violentas. Outro fato recente no norte do estado, que pareceu ser inofensivo e “passou batido“, poderia gerar pautas de problematização em toda mídia sul-rio-grandense. Em agosto, a Prefeitura de Passo Fundo entregou coleções de DVDs em todas as escolas municipais, com a filmografia completa de Teixeirinha. A mídia local apenas registrou o ato, reproduzindo o discurso do prefeito em nome da identidade do município atrelada ao cantor e cineasta. Em momento algum se questionou o sentido pedagógico de entregar aos professores filmes antigos de bangue-bangue, que reforçam estereótipos machistas e violentos.
Pra maioria, emoção; pra minoria, imparcialidade
Estes exemplos ilustram uma prática de colaboração da mídia para a idealização do gaúcho, junto de toda sua carga simbólica preconceituosa. Não são poucas as manchetes na Semana Farroupilha evocando o “orgulho de ser gaúcho”. Acompanho o tema atentamente há uns dez anos, como jornalista e pesquisador. Neste ano de 2014, esta lógica se repete, principalmente na televisão, no rádio e nas capas diárias dos jornais com motivos gauchescos, setembro inteiro.
Como exemplo, analisei a edição do programa Tele Domingo da RBS TV do dia 14 de setembro de 2014. Havia duas reportagens relacionadas ao gauchismo: o casamento gay que não pôde ser realizado dentro de um CTG e outra sobre a chama crioula. O programa iniciou com música de tom épico, mostrando imagens de fogo de chão e um homem pilchado tomando chimarrão. A seguir, a apresentadora anunciou as manchetes, incluindo as duas matérias já citadas.
A primeira a ser apresentada foi uma reportagem sobre a simbologia do fogo na tradição gaúcha. Uma edição muito bem cuidada, com imagens bonitas e música de tom solene. Mostrou-se primeiro um galpão na cidade de São Sepé, em que os entrevistados afirmam manter um fogo eterno há 200 anos. Conta-se esta história associando-a à tradição gaúcha do fogo de chão. Em seguida, cola-se o tema da chama crioula, espécie de tocha olímpica que desde 1947 serve de artifício simbólico para chamar atenção para as comemorações da semana do gaúcho. O que acaba ocorrendo é uma sequência discursiva que liga os significados primitivos do fogo a uma prática inventada no século XX. Assim justifica-se sentidos de herança cultural, de tradição passada de geração em geração desde a perder de vista.
Na segunda reportagem, com menos tempo de duração, podemos reparar a diferença no processo de edição. As duas noivas de Livramento tiveram cerimônia dentro do Fórum da cidade, porque o Centro de Tradições Gaúchas em que casariam foi queimado por fundamentalistas do gauchismo. O fato obteve cobertura à altura da cartilha da objetividade e da imparcialidade. Imagens duras, com luz direta, e nenhuma trilha para o beijo lésbico. Terá sido justa esta cobertura? O acontecimento não foi um marco histórico para a sociedade sul-rio-grandense?
Por outro lado, artigos de colunistas dos maiores jornais do estado, Correio do Povo e Zero Hora, sobre o casamento gay no CTG de Livramento, indicam que o direito à sexualidade é maior que o fundamentalismo tradicionalista. Escreveu Juremir Machado da Silva: “Ninguém tem o direito de não gostar de homossexuais”. Moisés Mendes e Cláudia Laitano também defenderam o casal de gurias e criticaram a posição do MTG. Claro, os espaços dedicados a opinião, nos jornais impressos, são mais propícios à reflexão. Mas talvez nenhum fato até hoje havia pautado tão fortemente os articulistas com a crítica ao tradicionalismo.
No caso das matérias, ainda prossegue a cobertura carregada de emoção para a agenda farroupilha. Há exceções, como a ótima matéria de Kamila Almeida, em 31 de agosto no jornal Zero Hora. Reportagem extensa com direito a capa, contou a história dos jovens tradicionalistas que questionam as regras inflexíveis do movimento. Jovens gays inclusos.
Há motivos para crer que o gauchismo é o principal catalisador do machismo no estado do Rio Grande do Sul. Assim, por um dever profissional e humano, nós da mídia não podemos reproduzir esta cultura de forma acrítica. Salva a maior parte dos colunistas de jornais, falta a nós repórteres e editores, de rádio e televisão, principalmente, não nos deslumbrarmos com a profusão de amor pelo cavalo, que assola o mês de setembro. Há regionalismos e regionalismos.
Agora, vamos falar da publicidade?
Comentários
Postar um comentário