Por que precisamos de uma movida?

Vitor Ramil
Vou insistir em escrever de novo sobre o documentário A Linha Fria do Horizonte. Não posso deixar passar pelo blog apenas como um ligeiro comentário sobre a programação de televisão do domingo passado. Convoco a todos também a não deixar o debate resumir-se a disputas de egos, de quem inventou a roda. Ou pior: enumerar o filme na lista de notícias que, devido ao valor local, recebem uma breve nota em canto de página. Vamos aprofundar a crítica sobre esta produção cinematográfica, pois faz pensar artisticamente o que somos hoje.

Leia o texto anterior:
A Linha Fria do Horizonte – há uma movida, no centro de outra história

O insight que permeia a Estética do Frio de Vitor Ramil e que vemos nos depoimentos de argentinos, uruguaios e sul-rio-grandenses remete à fronteira. Mas ela não existe como imagem no filme inteiro, como espaço, como geografia. Óbvio. Porque desta perspectiva cultural a fronteira é um ponto de encontro, um entre-lugar, tal escreveu Homi Bhabha. Portanto não é uma linha que se vê, é uma região.

Jorge Drexler
O filme joga luzes em algo excepcional que está acontecendo agora no sul da terra, tal Demétrio Xavier alcunhou esta região em seu programa radiofônico diário. E tudo não haveria nem começado se antes não houvesse uma história em comum, de disputas de fronteiras entre portugueses, índios e espanhóis. Não houvesse tango por todo o Prata. Também não chegaríamos ao amadurecimento artístico no patamar atual se antes não tivessem interações como a entre Raul Ellwanger e Mercedes Sosa; se até aqui outros compositores nunca tivessem cruzado a fronteira política e assumido uma identidade comum aos vizinhos.

São outros tempos. No século XX brigamos para afirmar nosso regionalismo dentre as linhas que nos delimitavam como Uruguai, Argentina e Rio Grande do Sul. Cada um de forma separada e com medo de interferências estrangeiras. Sempre houve exceções, pontual e esparsamente. Mas foi um momento marcado pelo fechamento local contra o suposto imperialismo norte-americano, da indústria cultural. O que ocorreu é que montamos indústrias regionais, como manda o arquétipo ianque, com a ilusão de estarmos repelindo-o. Imitamos o cowboy para vender como gaúcho.

Leia aqui o artigo: Teixeirinha Bangue-Bangue

Kevin Johansen
O longa-metragem de Luciano Coelho enumera fatos e discursos importantes para crermos que há algo novo e original ocorrendo. No século XXI estamos nos dando conta que a mundialização nem sempre é uma ameaça. A diluição das fronteiras serve em primeiro lugar para abrirmos a casa ao vizinho, reconhecendo afinidades. Aos poucos, nossos filhos casarão, gerando doble-chapas adoráveis. A não ser que continuemos temendo que, se deixarmos a porta aberta, ianques malvados invadirão el hogar para estuprar a mente da gurizada com rock‘n‘roll.

Há um ponto crítico, difícil de se identificar e entender. Quando um encontro artístico deixa de ser mero reconhecimento do outro, com diferenças e similitudes, e passa a ser visceral, antropofágico? No filme, o compositor Dany López fala sobre a produção do disco Canciones Cruzadas e nos oferece uma iluminação. Ele conta que o parceiro Marcelo Delacroix, ao interpretar composição sua acreditava que não havia feito nada mais que verter a canção do espanhol para o português. Mas o uruguaio observou que o porto-alegrense havia criado uma nova melodia introdutória, que conferia uma dimensão mais lírica à peça. Não foi um simples cover. Claro que este exemplo deste intercâmbio é algo incipiente, que deverá frutificar de forma mais profunda e original quando os dois cantautores se unirem na composição de cada canção. Mas já avança.

Dany Lopez
Super-acabada, concisa e original é a obra que Vitor Ramil vem construindo, e que dá o norte do documentário. O pelotense também começou de forma mais superficial, dialogando esteticamente com Mercedes Sosa. “Semeadura”, que foi gravada pela argentina, parece ter sido composta para ela, à medida que incorpora todos os elementos presentes na trajetória da cantora, como o protesto, o vocalize folclórico de introdução, etc. Depois deste flerte inicial com o regionalismo, o compositor colocou na mesma senda tudo o que colhera, incluindo Beatles, tango, música erudita e MPB. Deu em Ramilonga. A milonga de Vitor Ramil é muito original. Leva seu sobrenome. E o mais importante: não se fechou nos limites do pampa sul-rio-grandense, onde ele vive. Não imitou estilos mortos do passado. Incorporou o seu estar no mundo. E ele sintetizou tudo isso num ensaio fundante, A Estética do Frio.

Leia aqui o ensaio: A Estética do Frio

Richard Serraria
A milonga vale muito pouco como registro folclórico, perto do patrimônio cultural que está se tornando, quando tantos cantautores se hermanam e a assumem como gênero. É preciso de movidas, de movimentos estéticos, com discurso provocador e espírito de grupo. Mesmo que na gênese pareça forçado, como quando Caetano Veloso convocou a turma pra foto do disco Tropicália. Quer dizer: o movimento foi promovido por ele, baseado em algo que já acontecia e que veio a ganhar dimensão maior depois de sintetizado.

Em 1968, Sérgio Sampaio, Jorge Mautner e outros, ficaram de fora da foto e do disco Tropicália. Não significou que não foram tropicalistas. Trata-se da injustiça que a fundação de um movimento comete. Mas artisticamente não diminui ninguém. A partir da reflexão e do debate provocados pelo movimento, avanços foram elaborados. Será que haveria Mangue Beat, não houvesse Tropicalismo?

Leia aqui sobre Tropicalismo: O prazer em comer o país

Tomi Lebrero
E aqui no sul? Qual é o nosso movimento? O Nativismo ensaiou nos anos 80 um desbunde estético em alguns festivais, mas sucumbiu ao moralismo cetegista e ao fascínio da indústria cultural local. Ficamos caretas e restritos às fronteiras que tanto louvamos.

Por outro lado, Bebeto Alves, Antonio Villeroy, Nelson Coelho de Castro e Gelson Oliveira, no genial projeto Juntos, até representaram um proto-movimento, mas de forma muito esparsa. O brado por uma nova estética coube sempre mais a Bebeto, solito no más. Vitor Ramil também, até a filmagem deste filme vital.

Leia mais sobre Bebeto Alves

Em tempo, o filme A Linha Fria do Horizonte está disponível no sistema Now da Net, no Rio Grande do Sul.

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