A diferença entre o passo-fundense e a vaca holandesa
*texto publicado no jornal O Nacional, em 14 de setembro de 2013
Sou doador de sangue de carteirinha. Vide arquivos do Hemopasso e da Santa Casa de Porto Alegre. Portanto a atual campanha publicitária do Hemocentro de Passo Fundo, que tem estampado páginas de jornal, fez-me lembrar que daqui a uns meses poderei doar o líquido vermelho corrente em minhas veias. Fez-me lembrar mais ainda de que o sangue não carrega valores como o da solidariedade, nem tradições, conforme o anúncio propaga.
Há tempos os antropólogos estão convencidos que a genética não determina a cultura de forma significativa. São muitos os fatores transmitidos pelo sangue de pais para filhos, mas a cultura se passa pela vivência, pelo aprendizado.
Apesar da ciência e por força de expressão, esta gafe é constantemente cometida nos discursos gauchescos, publicitários e até de historiadores diletantes. Pedro Ari Verissimo da Fonseca escreveu em 1999 no livro “O gaúcho quem é...” que “uma vaca holandesa terá sempre as mesmas aptidões, onde quer que ela nasça”. Seu tema tratava mesmo de mamíferos, mas não dos que dão leite em larga escala. Fonseca acredita que “onde houve um índio de aptidão guerreira e cavaleira, cruzado com um português, gerou um ser semelhante em aptidões”. Esqueceu de observar que a habilidade de dar leite está ligada à natureza, enquanto a de guerrilha é intrínseca à cultura.
Outro descuido é atribuir o tipo social gaúcho, existente na região da campanha nos séculos XVII, XVIII e XIX, às raízes de Passo Fundo. Grande parte da historiografia afirma que o gaúcho não existiu nestas plagas. Mas o mito gauchesco aparece em alguns livros de história do município, a partir da década de 1920, em forma de poesia, e até mesmo sendo forçado no conteúdo dos textos, a partir da década de 1960.
Em 1996, Ney E. Possap D’avila escreveu que os campos serranos (denominação antiga para onde se situa o município) apresentavam características diferenciadas da campanha, tanto na formação e evolução, como no elemento humano típico, o gaúcho. Para ele, os paulistas (maioria curitibanos) monopolizaram as páginas da história dos primeiros tempos de Passo Fundo (esquecendo dos indígenas). Esse “monopólio” dos birivas só teria sido repartido com o elemento imigrante europeu.
Para autores como Maria Luiza Martini, que na coleção História Geral do Rio Grande do Sul (2006) descreve o “pobre e ignorado”, quem habitou as florestas e ervais de Cruz Alta, Palmeira das Missões, Soledade, Passo Fundo e Campo Novo, no século XIX, foi o caboclo.
Há versões da historiografia regional que enfatizam a constituição da cidade de Passo Fundo a partir do caminho de tropas que cruzavam o estado do Rio Grande do Sul em direção a São Paulo, passando por caboclos ervateiros no chamado Caminho do Meio. Essa tese ligada ao tropeirismo, combinada a uma confusão conceitual, acaba construindo uma identificação do homem a cavalo com o gaúcho.
Um dos principais textos da historiografia passofundense, citado por vários autores, é Passo Fundo das Missões (1966), do jornalista Jorge Cafruni. Nele consta a versão de que Passo Fundo teria, “indubitavelmente, um papel dos mais significativos, na integração bandeirante, em terra pampeana, e mesmo noutros quadrantes do país”. Para o escritor, o Planalto Médio teria sido o centro irradiante da “fisionomia étnica” do gaúcho, “ponto que era de concentração da indiada rio-grandense, apresada pelos penetradores bandeirantes”. Sua versão apóia-se na afirmativa de que “são os bandeirantes, talvez mais que os açorianos, os que contribuem, com maior parcela, no caldeamento da gente branca com os aborígines”, formando o tipo lendário que é o gaúcho rio-grandense. Portanto Cafruni confunde mestiçagem e homem a cavalo com gaúcho. Cabe observar que ele foi um dos fundadores do CTG Lalau Miranda.
Welci Nascimento, em Passo Fundo, tchê! (1992), livro que tem como intuito resgatar a história do município e promovê-lo, ao mesmo tempo em que elogia a atuação dos CTGs na cidade, afirma que “no início do século passado [XIX] existiam no território de Passo Fundo quatro grupos sociais: o fazendeiro, o caboclo, o índio e o negro”. Fornece, assim, argumento contra sua própria posição de divulgar o gauchismo, ao não listar o gaúcho dentre os grupos.
Leia outros artigos da mesma série:
Teixeirinha Bangue-Bangue
A cuia na praça
Síndrome vira-latas em Passo Fundo, Tchê!
Estes exemplos ilustram o estilo de escrever e opinar dos principais memorialistas do município. Suas versões do passado, muitas vezes, estão comprometidas com uma tendência muito difundida pelos intelectuais rio-grandenses de “glorificação do gaúcho”. Sandra Jatahy Pesavento, no livro RS: cultura e ideologia (1980), escreveu que talvez fosse essa uma das características que melhor expressavam a visão que a classe dominante agropecuarista apresentava de si mesma para a sociedade. Com a transformação estrutural econômica do Estado no pós-30, a representação daquela classe permaneceu, mesmo sem correspondência na estrutura vigente. E aqui eu complementaria que: permaneceu e dominou o imaginário, mesmo onde não havia correspondência.
Em tempo: entendendo que o gauchismo corre em minhas veias, se eu doar sangue demais poderei ficar menos gaúcho? E se quem o receber for paulista?
Sou doador de sangue de carteirinha. Vide arquivos do Hemopasso e da Santa Casa de Porto Alegre. Portanto a atual campanha publicitária do Hemocentro de Passo Fundo, que tem estampado páginas de jornal, fez-me lembrar que daqui a uns meses poderei doar o líquido vermelho corrente em minhas veias. Fez-me lembrar mais ainda de que o sangue não carrega valores como o da solidariedade, nem tradições, conforme o anúncio propaga.
Há tempos os antropólogos estão convencidos que a genética não determina a cultura de forma significativa. São muitos os fatores transmitidos pelo sangue de pais para filhos, mas a cultura se passa pela vivência, pelo aprendizado.
Apesar da ciência e por força de expressão, esta gafe é constantemente cometida nos discursos gauchescos, publicitários e até de historiadores diletantes. Pedro Ari Verissimo da Fonseca escreveu em 1999 no livro “O gaúcho quem é...” que “uma vaca holandesa terá sempre as mesmas aptidões, onde quer que ela nasça”. Seu tema tratava mesmo de mamíferos, mas não dos que dão leite em larga escala. Fonseca acredita que “onde houve um índio de aptidão guerreira e cavaleira, cruzado com um português, gerou um ser semelhante em aptidões”. Esqueceu de observar que a habilidade de dar leite está ligada à natureza, enquanto a de guerrilha é intrínseca à cultura.
Outro descuido é atribuir o tipo social gaúcho, existente na região da campanha nos séculos XVII, XVIII e XIX, às raízes de Passo Fundo. Grande parte da historiografia afirma que o gaúcho não existiu nestas plagas. Mas o mito gauchesco aparece em alguns livros de história do município, a partir da década de 1920, em forma de poesia, e até mesmo sendo forçado no conteúdo dos textos, a partir da década de 1960.
Em 1996, Ney E. Possap D’avila escreveu que os campos serranos (denominação antiga para onde se situa o município) apresentavam características diferenciadas da campanha, tanto na formação e evolução, como no elemento humano típico, o gaúcho. Para ele, os paulistas (maioria curitibanos) monopolizaram as páginas da história dos primeiros tempos de Passo Fundo (esquecendo dos indígenas). Esse “monopólio” dos birivas só teria sido repartido com o elemento imigrante europeu.
Para autores como Maria Luiza Martini, que na coleção História Geral do Rio Grande do Sul (2006) descreve o “pobre e ignorado”, quem habitou as florestas e ervais de Cruz Alta, Palmeira das Missões, Soledade, Passo Fundo e Campo Novo, no século XIX, foi o caboclo.
Há versões da historiografia regional que enfatizam a constituição da cidade de Passo Fundo a partir do caminho de tropas que cruzavam o estado do Rio Grande do Sul em direção a São Paulo, passando por caboclos ervateiros no chamado Caminho do Meio. Essa tese ligada ao tropeirismo, combinada a uma confusão conceitual, acaba construindo uma identificação do homem a cavalo com o gaúcho.
Um dos principais textos da historiografia passofundense, citado por vários autores, é Passo Fundo das Missões (1966), do jornalista Jorge Cafruni. Nele consta a versão de que Passo Fundo teria, “indubitavelmente, um papel dos mais significativos, na integração bandeirante, em terra pampeana, e mesmo noutros quadrantes do país”. Para o escritor, o Planalto Médio teria sido o centro irradiante da “fisionomia étnica” do gaúcho, “ponto que era de concentração da indiada rio-grandense, apresada pelos penetradores bandeirantes”. Sua versão apóia-se na afirmativa de que “são os bandeirantes, talvez mais que os açorianos, os que contribuem, com maior parcela, no caldeamento da gente branca com os aborígines”, formando o tipo lendário que é o gaúcho rio-grandense. Portanto Cafruni confunde mestiçagem e homem a cavalo com gaúcho. Cabe observar que ele foi um dos fundadores do CTG Lalau Miranda.
Welci Nascimento, em Passo Fundo, tchê! (1992), livro que tem como intuito resgatar a história do município e promovê-lo, ao mesmo tempo em que elogia a atuação dos CTGs na cidade, afirma que “no início do século passado [XIX] existiam no território de Passo Fundo quatro grupos sociais: o fazendeiro, o caboclo, o índio e o negro”. Fornece, assim, argumento contra sua própria posição de divulgar o gauchismo, ao não listar o gaúcho dentre os grupos.
Leia outros artigos da mesma série:
Teixeirinha Bangue-Bangue
A cuia na praça
Síndrome vira-latas em Passo Fundo, Tchê!
Estes exemplos ilustram o estilo de escrever e opinar dos principais memorialistas do município. Suas versões do passado, muitas vezes, estão comprometidas com uma tendência muito difundida pelos intelectuais rio-grandenses de “glorificação do gaúcho”. Sandra Jatahy Pesavento, no livro RS: cultura e ideologia (1980), escreveu que talvez fosse essa uma das características que melhor expressavam a visão que a classe dominante agropecuarista apresentava de si mesma para a sociedade. Com a transformação estrutural econômica do Estado no pós-30, a representação daquela classe permaneceu, mesmo sem correspondência na estrutura vigente. E aqui eu complementaria que: permaneceu e dominou o imaginário, mesmo onde não havia correspondência.
Em tempo: entendendo que o gauchismo corre em minhas veias, se eu doar sangue demais poderei ficar menos gaúcho? E se quem o receber for paulista?
Comentários
Postar um comentário