100 anos de prosperidade + 50 anos de gauchismo
*texto publicado no jornal O Nacional, em 28 de setembro de 2013
Nesta série de artigos pretendo demonstrar como a identidade gauchesca foi construída em Passo Fundo. Para esta empreitada, não existe melhor demonstração que a análise da publicidade. Há tempos, a prefeitura do município, que aqui chamarei carinhosamente de Dona Prefa, tem explorado amplamente o calendário de eventos e a mídia com a pretensão de promover estas plagas como o destino mais gauchesco do mundo. O sesquicentenário municipal então foi um banquete!
Em 2007, completaram-se 150 anos de emancipação de Passo Fundo. E o que tivemos? Um festival de celebrações gauchescas em anúncios publicitários. Porém, ao contrário do que poderíamos pensar, esta prática não é antiga. Teve início em um passado perto de nós, que sucedeu um período sem gauchismo algum na cidade.
Vamos voltar 50 anos no tempo. Um dos grandes achados em minha pesquisa sobre o assunto é um anúncio simples, condizente com os padrões da época, 07 de agosto de 1957. Para marcar a data do centenário, a Dona Prefa encomendou ao jornal Diário da Manhã uma mensagem de capa, ao lado de saudações da Câmara de Vereadores e do Governo Estadual. Assinado pelo então prefeito Wolmar Salton, o texto continha em caixa alta a expressão “Terra do patriarca Joaquim Fagundes dos Reis”, um dos notáveis na história do município.
Nota-se que não era “Terra de Teixeirinha”, nem “A mais gaúcha cidade do Rio Grande do Sul”, tampouco “Passo Fundo, Tchê”, slogans que vieram a ser amplamente utilizados depois. As outras mensagens citadas seguem o mesmo estilo, parabenizando a população de Passo Fundo e desejando prosperidade, bem como nas outras páginas do jornal, onde foram publicadas saudações de municípios vizinhos e empresas da região. Até mesmo a Churrascaria Gaúcha publicou anúncio afirmando: “Quando da ocasião dos festejos do 1º Centenário desta Progressista Terra de Fagundes dos Reis, saúda suas Autoridades e seu distinto Povo”. Ou seja, nem mesmo a churrascaria sugeria uma identidade gauchesca naquela época.
A ausência de elementos correspondentes ao gaúcho no discurso sobre a cidade no centenário corrobora com a tese do professor Tau Golin. O historiador escreveu no livro Identidades (2004) que o gauchismo passofundense foi inventado em um processo a partir da década de 1950, e se fortaleceu apenas no final do século XX.
Para efeito comparativo, voltamos atenção agora ao passado recente, ao material publicitário produzido pela prefeitura nos festejos de 150 anos de emancipação política do município. Foi há pouco tempo, em 2007, e o leitor deve ter familiaridade com este arcabouço de reafirmações de uma imagem sem ligação com a história cabocla do município. Teve até outdoors de grandes empresas locais reproduzindo frases que exaltam “orgulho gaúcho”, “raízes”, “querência amada”, etc.
Em uma das peças sazonais da rede de Farmácias São João, grifou-se “Dos tropeiros à Capital Nacional da Literatura”, o outdoor estampava a fachada da loja da estação rodoviária. Note bem que dessa cronologia, o povo kaingang, depois de expulso de sua terra, foi eliminado do imaginário. O outdoor ignora simbolicamente as crianças indígenas que ali pedem esmola. Já o tropeiro paulista, protagonista da urbanização desta terra, é confundido com gaúcho para forjar uma raiz histórica. Em um processo análogo, a cuia tornou-se símbolo do gauchismo, a revelia de sua origem na cultura indígena.
Um caso emblemático é o dos supermercados Comercial Zaffari, representados em sua publicidade, desde a década de 1980, pelo desenho de um gauchinho, que tem o estilo de personagens de histórias em quadrinhos.
Leia outros artigos da mesma série:
De que importa quem foi Salomé
A diferença entre o passo-fundense e a vaca holandesa
Teixeirinha Bangue-Bangue
A cuia na praça
Síndrome vira-latas em Passo Fundo, Tchê!
Lembremos aqui um anúncio da Dona Prefa na semana Farroupilha de 2006, já antecipando o sesquicentenário. Em página inteira no jornal O Nacional, a frase “parabéns povo passo-fundense, o povo mais gaúcho do Rio Grande do Sul”. O recado vinha ilustrado com uma mão empunhando uma cuia de chimarrão em uma fotografia contra-luz. O anúncio ainda possuía alguns versos que associam a bebida à hospitalidade. Ou seja, a cuia, que poderia aludir a uma identidade indígena, tornou-se símbolo exclusivamente gauchesco.
É visto que nos 150 anos o poder municipal posicionou-se não apenas simpático ao gauchismo, mas utilizou o discurso para obter vantagens simbólicas, associando a municipalidade a este apelo cultural dominante no estado. Também promoveram-se eventos de temática gauchesca, como Mostra da Cultura Gaúcha e Encenação da Batalha do Pulador.
Estas comemorações demonstram a consagração de um imaginário identitário que se sustenta em órgãos públicos e entidades tradicionalistas. Sua reprodução acontece fundamentalmente pelo calendário de eventos, datas privilegiadas para a reprodução na mídia e na publicidade. Já é tão corriqueiro que parece ser natural. Há 50 anos não era.
Nesta série de artigos pretendo demonstrar como a identidade gauchesca foi construída em Passo Fundo. Para esta empreitada, não existe melhor demonstração que a análise da publicidade. Há tempos, a prefeitura do município, que aqui chamarei carinhosamente de Dona Prefa, tem explorado amplamente o calendário de eventos e a mídia com a pretensão de promover estas plagas como o destino mais gauchesco do mundo. O sesquicentenário municipal então foi um banquete!
Em 2007, completaram-se 150 anos de emancipação de Passo Fundo. E o que tivemos? Um festival de celebrações gauchescas em anúncios publicitários. Porém, ao contrário do que poderíamos pensar, esta prática não é antiga. Teve início em um passado perto de nós, que sucedeu um período sem gauchismo algum na cidade.
Vamos voltar 50 anos no tempo. Um dos grandes achados em minha pesquisa sobre o assunto é um anúncio simples, condizente com os padrões da época, 07 de agosto de 1957. Para marcar a data do centenário, a Dona Prefa encomendou ao jornal Diário da Manhã uma mensagem de capa, ao lado de saudações da Câmara de Vereadores e do Governo Estadual. Assinado pelo então prefeito Wolmar Salton, o texto continha em caixa alta a expressão “Terra do patriarca Joaquim Fagundes dos Reis”, um dos notáveis na história do município.
Nota-se que não era “Terra de Teixeirinha”, nem “A mais gaúcha cidade do Rio Grande do Sul”, tampouco “Passo Fundo, Tchê”, slogans que vieram a ser amplamente utilizados depois. As outras mensagens citadas seguem o mesmo estilo, parabenizando a população de Passo Fundo e desejando prosperidade, bem como nas outras páginas do jornal, onde foram publicadas saudações de municípios vizinhos e empresas da região. Até mesmo a Churrascaria Gaúcha publicou anúncio afirmando: “Quando da ocasião dos festejos do 1º Centenário desta Progressista Terra de Fagundes dos Reis, saúda suas Autoridades e seu distinto Povo”. Ou seja, nem mesmo a churrascaria sugeria uma identidade gauchesca naquela época.
A ausência de elementos correspondentes ao gaúcho no discurso sobre a cidade no centenário corrobora com a tese do professor Tau Golin. O historiador escreveu no livro Identidades (2004) que o gauchismo passofundense foi inventado em um processo a partir da década de 1950, e se fortaleceu apenas no final do século XX.
Para efeito comparativo, voltamos atenção agora ao passado recente, ao material publicitário produzido pela prefeitura nos festejos de 150 anos de emancipação política do município. Foi há pouco tempo, em 2007, e o leitor deve ter familiaridade com este arcabouço de reafirmações de uma imagem sem ligação com a história cabocla do município. Teve até outdoors de grandes empresas locais reproduzindo frases que exaltam “orgulho gaúcho”, “raízes”, “querência amada”, etc.
Em uma das peças sazonais da rede de Farmácias São João, grifou-se “Dos tropeiros à Capital Nacional da Literatura”, o outdoor estampava a fachada da loja da estação rodoviária. Note bem que dessa cronologia, o povo kaingang, depois de expulso de sua terra, foi eliminado do imaginário. O outdoor ignora simbolicamente as crianças indígenas que ali pedem esmola. Já o tropeiro paulista, protagonista da urbanização desta terra, é confundido com gaúcho para forjar uma raiz histórica. Em um processo análogo, a cuia tornou-se símbolo do gauchismo, a revelia de sua origem na cultura indígena.
Um caso emblemático é o dos supermercados Comercial Zaffari, representados em sua publicidade, desde a década de 1980, pelo desenho de um gauchinho, que tem o estilo de personagens de histórias em quadrinhos.
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É visto que nos 150 anos o poder municipal posicionou-se não apenas simpático ao gauchismo, mas utilizou o discurso para obter vantagens simbólicas, associando a municipalidade a este apelo cultural dominante no estado. Também promoveram-se eventos de temática gauchesca, como Mostra da Cultura Gaúcha e Encenação da Batalha do Pulador.
Estas comemorações demonstram a consagração de um imaginário identitário que se sustenta em órgãos públicos e entidades tradicionalistas. Sua reprodução acontece fundamentalmente pelo calendário de eventos, datas privilegiadas para a reprodução na mídia e na publicidade. Já é tão corriqueiro que parece ser natural. Há 50 anos não era.
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