Pra que lado fica a praia?


Meu avô Alcibíades Ribas tinha costumes estranhos para um guri de apartamento que nem eu. Falava muito pouco e guardava um humor peculiar, que só aparecia em intervalos cadenciados com a tagarelice alheia. Sua anedota mais inesquecível ocorreu em uma viagem entre as missões e o litoral norte do estado. Foi uma jornada carregada de fantasia, a qual assisti no banco de trás do opalão branco que o vô navegou por estradas bem menos rápidas que as de hoje.

Eram quase anos 90, eu não tinha nem dez anos de idade. Não existia Free Way. Alcibíades e dona Célia, minha avó, saíram de Santo Ângelo com meus primos Fernanda e Lívius, passaram na capital me buscar e fomos rumo ao mar, ainda de madrugada.

Os primeiros quilômetros foram tranqüilos, com muito chimarrão e chocolate Refeição, vendo os faróis passarem esporadicamente no pára-brisa. Até que precisamos sair do asfalto e seguir por estrada de chão. Criado “pra fora”, seu Alcibíades não se mixava pra rodar na terra vermelha. Mas a areia daquela geografia era menos familiar ao missioneiro. Então ao invés de corrermos saltando poeira pra trás, fomos devagarzinho, admirando a paisagem esbranquiçada, esverdeada de tanto em tanto pelos pinheiros do areal de Osório.

Buracos aqui e ali, uma porteira aberta e ninguém no caminho. Andamos e andamos curtindo aquelas descobertas. O avô apenas sorria com o canto da boca e acenava positivamente com a cabeça para demonstrar confiança, enquanto minha avó ia ficando cada vez mais ansiosa por não conhecer o caminho. Após um silêncio insistente, no sono de um e de outro, e no cantar dos pássaros cada vez mais estridente, anunciando o amanhecer, o motorista fez o seu anúncio: - estamos perdidos!

A verdade é que nem lembro muito da sensação de terror por estar perdido, tal foi a rapidez na solução, protagonizada, claro, pelo vô Bide. Não sei se de tanto minha avó falar e se desesperar, o opalão parou bruscamente para que pudéssemos pedir informação. O problema é que olhávamos ao redor e não víamos uma alma viva rente à estrada e à cerca que ladeava. - Vô, aquela casa está muito longe! Vai descer, bater palmas, gritar?

Seu Alcebíades encostou mais o opala rente à propriedade, e sem cair no barranco freou. Girando numa cadência muito própria a manivela do vidro, pôs o braço pra fora da janela e criou um ambiente de intimidade com seu interlocutor, que surgiu num passe de mágica: - Ô seu cavalo, pra que lado fica Atlântida Sul?

A performance causou um rebuliço na criançada dentro do banheirão, que seguiu como que sabendo o destino correto. Com o canto da boca mais erguido ainda, o vô embicou numa ponte de pedra que subia. Divertíamo-nos na montanha-russa, até que alcançamos o pico e não podíamos enxergar o fim da descida.

O dia amanhecia com uma neblina rente ao chão. Lá em cima da ponte, parecíamos estar sobre as nuvens. Ladeira abaixo, o trenzinho do terror ia nos apavorando. O vô não falava nada, não atendia aos apelos infantis e o cantinho da boca não mexia.

Estávamos caindo mar adentro a bordo do opalão branco. Não havia nada sólido em nossa frente. Não iríamos mais pescar, jogar bola na orla, nem comer mingau de biju. Era o fim das férias.

Contrariando nossa imaginação, num instante confortador, uma curva oblíqua amaciou e reajustou o rumo daquele velho auto, fazendo desaparecer o mar. Num alívio coletivo, eu e meus primos começamos a sentir o calor dos raios de sol, em meio à névoa que esmaecia. A face do vô Bide se iluminava, transbordando com o logro. O canto de sua boca voltava a se arreganhar, em sinal de esplêndida satisfação.

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