O puchirão do Gé Picaço
Vamos fazer um puchirão
*artigo publicado originalmente na coluna do Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo, no jornal O Nacional, em 04/05/2012.
O Arquivo Histórico Regional guarda em seu porão preciosidades, ávidas por algum curioso que as interprete e as traga ao público com devido reconhecimento. Há um livro esquecido, pouco citado e pesquisado que só lá pude conhecer. Como quem esbarra numa oferta de um sebo, um dia busquei na prateleira os poemetos serranos de Lacerda de Almeida Junior, publicados em 1925. Imagino a “inquietação daquele volume precioso”, passados mais de 80 anos de anonimato, até a tarde em que assinei presença no livro de pesquisadores naquele verão de 2007.
Lembro o momento quando puxei, entre lombadas puídas de nomes como Passo Fundo, Tchê e Coletânea gauchesca: versos xucros, uma capa amarelada com o título: O puchirão do Gé Picaço. Estava freqüentando o AHR diariamente, no período de veraneio, dedicado a finalizar minha pesquisa sobre o gauchismo em Passo Fundo, imerso na historiografia municipal. Mal sabia que encontraria uma chave importante de minha dissertação.
Justifico o valor do livro para mim, naqueles anos mestrando na UPF, pesquisador do regionalismo sul-rio-grandense. Pois O puchirão do Gé Picaço se propunha a desvendar um tipo humano pouco conhecido no país, o caboclo serrano do Rio Grande do Sul. Lá na década de 1920, em pleno florescer regionalista brasileiro, Passo Fundo compunha a grande região serrana, por denominação geográfica. Só mais tarde seria denominada Planalto Médio.
Assinando com o codinome Julio Simão, o autor afirmava logo no prefácio que a campanha e a fronteira eram vasculhadas e estudadas em seus costumes e tradições. Referia-se ao gaúcho. Mas quanto a serra, havia um certo descaso e ignorância sobre a terra e o homem, o que o autor lastimava.
Então Passo Fundo é terra de gente boa? É de gaúcho ou de caboclo? Imaginem meu entusiasmo, tal um paleontólogo que encontra o elo perdido. Para Almeida Junior, o caboclo era o componente mais importante do povo passo-fundense, e viria a se misturar em outro processo de miscigenação com as correntes imigrantes do século XX. Ou seja, a identidade gentílica da cidade deveria emergir dos traços predominantes do caboclo. Essa versão é sustentada atualmente pelo historiador Tau Golin, meu orientador na pesquisa.
Mas à revelia da posição pioneira de Almeida Junior, as obras mais referidas e estudadas nas escolas são as do chamado “pai da história” do município, Francisco Antonino Xavier Oliveira. Seus escritos e pesquisas historiográficas mesclam-se com poemas que glorificam políticos rio-grandenses e outros de causos gauchescos.
Fica evidente a disparidade entre os dois autores na escolha do tipo humano a ser tomado como referência gentílica. É relevante considerar que Xavier Oliveira pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico do RS, que consolidou o que se convencionou chamar de “historiografia tradicional gaúcha”, tributária, em grande medida, dos relatos produzidos pelos cronistas do período colonial, e que serviu de suporte para a mitificação do gaúcho e das histórias da campanha.
A seguir, em um quadro de crescente urbanização no estado, com notável transformação sócio-cultural, o gaúcho continuou alimentando o imaginário. Passo Fundo também “colou” sua representação ao gauchismo, num processo contemporâneo, baseado na mídia e num aparato institucionalizado pelos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). O fenômeno Teixeirinha, sucesso na venda de discos e no cinema na década de 1970, foi determinante para a edificação do imaginário do “Gaúcho de Passo Fundo”, título de música e filme seus.
O poder público municipal contribui até hoje para que o gauchismo seja a principal e às vezes única expressão cultural da cidade. Desde 1980, quando aprovado o projeto “Passo Fundo, Tchê”, a Prefeitura e a Câmara de Vereadores passaram a promover sistematicamente festivais, mostras e rodeios. Apesar de estes eventos não abrangerem a pluralidade cultural local, os políticos não encontram problemas para justificar volumosos investimentos públicos nos mesmos.
Para finalizar, recomendo o AHR aos pesquisadores e curiosos, que, de férias ou não, sentem uma coceira na ponta dos dedos quando entram num lugar cheio de livros. Acreditem, há nele um título incrível esperando por cada um, não ouso adivinhar há quantos anos. Vamos começar um puchirão, que revele nossa história regional com mais nitidez.
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