A sbórnia ruidosa e umbilical de Arthur de Faria & Orkestra do Kaos
Desrecomendado nas redes sociais por artistas de todo Brasil, em uma ação de marketing "invertido" (veja aqui), o novo projeto do compositor Arthur de Faria teve show em Porto Alegre na última quinta-feira. Além da malandragem, ironia, "autodepreciação" e publicidade, o espetáculo foi uma porrada na cara com luvas de boxe e jogo de pernas tipo GIF animado. Mérito do band leader e também de uma turma de jovens músicos, boa parte com pedigree, todos talentosos.
Arthur de Faria procurava nos últimos anos conceber um disco intitulado Música para bater de frente, que seria o quarto da tetralogia do Seu Conjunto, sucedendo Música para bater pezinho (2002), Música pra gente grande (2005) e Música para ouvir sentado (2010). Os esforços acabaram por se chocar tão fortemente que esfacelaram o grupo, abrindo lugar para um novo projeto de banda, a Orkestra do Kaos. Aqui não falaremos mais de socos, pois nem sabemos se houve, tampouco fomos investigar as minúcias privadas, tal revista de celebridades. Referimo-nos sim a um embate estético, percebido no produto final (um EP digital e não um disco físico).
Sem rotular musicalmente, a Orkestra do Kaos trilha uma vertente da música brasileira por onde passam a vanguarda paulista do Língua de Trapo, o experimentalismo tipo Os Mulheres Negras e o pop do Pato Fu. Há ruído, verso laborado, ironia e rebeldia. Mas fosse para comparar e enquadrar em algum gênero ou tendência, poderíamos grafar sem medo: tipo sbórnia. Os dois kás do nome do grupo dão a dica. Os trejeitos na performance de Arthur, com olhos estalados que giram e sorriem maliciosamente, as mãozinhas frenéticas que querem fazer levitar, enquanto os braços estão colados no corpo. Sem dúvida, incorporação performática de Tangos & Tragédias.
Se você nunca foi à Sbórnia, clique aqui.
Notamos que na gestação deste novo trabalho, o compositor deixou que ao menos a cabeça saísse para fora da barriga para ouvir mais alto o que se passava ao redor. Desde o parto, tem mantido o rebento ligado ao cordão umbilical. A metáfora materializa-se na formação da banda. São filhos de músicos importantes das cenas musicais gaúchas, incluindo a filha do próprio Arthur, a cantora Maria Antônia. Não estão sozinhos, abandonados no mundo, tampouco fugidos de casa num rompante rebelde. A gurizada está, sim, dedicada a um produtivo papo reto com o tio.
Se o bebê segue ligado ao umbigo, mas ouve o mundo externo, há tango, candombe e milonga. Os arranjos abusam das guitarras complementares de Lorenzo Flach (ambiências e camadas) e Erick Endres (solos e riffs). Tem peso e suingue na bateria de Lucas Kinoshita, no baixo de Bruno Vargas e na percussão de Giovanni Berti. A voz é destemida e quase rasgada na performance de Maria Antônia. O ambiente é propício para outro tio, Adolfo Almeida Jr., improvisar no fagote com postura rock, vide a última faixa do EP, “Ascese”.
A estrela do repertório é “Saudade da Maloca”, composta em parceria com o mineiro John Ulhoa, do Pato Fu. Sintetiza o espírito sborniano da Orkestra do Kaos enquanto tensiona com certas identidades brasileiras correntes. Em “Os Deuses”, criada com o “irmão gêmeo” Marcelo Delacroix e gravada no ótimo disco Depois do Raio (2006), mais uma mostra de letra esperta e graciosa. Condecoração garantida do consulado da Sbórnia na brasiléia.
O show da quinta-feira no Teatro da Santa Casa ainda teve duas versões de músicas de outros compositores. Com a participação de Helio Flanders, tocaram o sucesso da banda Vanguart, “Semáforo”, em ritmo de milonga, picotando com inserções de versos originais de Arthur. Já do repertório de Vitor Ramil, outrora Barão de Satolep e sborniano, buscaram “Desenchufado”, das mais soturnas e experimentais de sua lavra.
À guisa de konklusão, observamos que após emergir no mundo imaginário como um entre-lugar pós-moderno, consolidar-se em espetáculos e desenhos animados, protagonizados por Nico Nicolaiewsky e Hique Gomez (e Simone Rasslan), a Sbórnia agora é um gênero musical. Um gênero afetivo que designa músicos que não se levam tããão a sério. Na hora de cadastrar as canções no Spotify, já não precisam mais perder os cabelos, na dúvida entre MPB, rock, indie, ou “aquela música que não tem nome”.
*crédito das fotos: Victória Venturella.
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