Rodrigo Nassif, a vos te iuno del scratch dela mula
Fôssemos todo o público uma donzela que adentra o salão buscando um par, o quarteto de Rodrigo Nassif estenderia a mão para bailar, submetendo-nos a um tango oscilante, entre o brusco e o delicado.
Este encontro pôde materializar-se na última quarta-feira no Teatro Carlos Carvalho da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre. Bailamos pra lá e pra cá. Ora, levados a deslizar no salão livremente, viajando em outra dimensão criada pelas polifonias do quarteto. Noutras, pouco tínhamos chance de guiar o rumo, seguindo o pulso firme dos arranjos que ditavam a cadência com solavancos, mantendo-nos ouvintes totalmente reféns de suas intenções.
O nome do concerto também reservava certa dualidade. Não entre o drama e o romance como no tango, mas entre o sentido literal e o que suas expressões curiosas despertam em nossa imaginação, à revelia do conteúdo hermético. O show levava o nome de um candombe dissonante, que Nassif compôs e batizou junto a um amigo uruguaio. Del scratch dela mula é escrito em Lunfardo, variante de dialetos dos imigrantes italianos na Argentina e no Uruguai. É a redução de uma expressão maior “a vos te iuno del scratch dela mula” (em português: “eu te conheço da foto do jornal“, ou “das páginas policiais”, ou o equivalente a “te conheço de outros carnavais”).
Quando a mim o violonista revelou o sentido literal, fiquei surpreso. Pois sem entender que língua era aquela, imaginava algo totalmente diferente. Baseando-me na personalidade do artista e na sensação de sua música, cri que “mula” era mula mesmo, e “scratch” variava de alguma língua anglo-saxã, significando “arranhão”. O “arranhão da mula” seria uma metáfora daquele bageense de estirpe rude dedilhando hábil as cordas de nylon do violão. Metáfora ideal na minha cabeça, para seu estilo único.
O fato é que também conheço Nassif de outros carnavais, os passo-fundenses. Lembro da primeira vez em que o vi, empunhando uma Fender Stratocaster, em um palco montado em frente à biblioteca da UPF. Lá, eu cursava Jornalismo, enquanto ele se formava em Música e freqüentava os bares para beber água e contar histórias com erudição, muitas do argentino Jorge Luis Borges, sua fixação na época.
Pois a literatura é a maior influência de sua música instrumental. Dedica peças ao colombiano Gabriel García Márquez (Balada de los Buendìa) e se inspira em histórias fantásticas para compor, a exemplo de Tio Pepo, sobre um fantasma com quem convivia. Seus tangos e milongas insinuam cenas cinematográficas, com insistente batida seca, por vezes violenta.
Já conhecia boa parte do repertório do show, ouvindo seus CDs. Fiquei surpreso com o resultado em formato quarteto, transpondo-o de gênero. Temas eruditos para violão solo tornaram-se obras enquadradas na seção jazz latino-americano. Com a adição do violão de Carlos Ezael, o contrabaixo de Samuel Cibils, e a bateria de Leandro Schirmer, músicas como Arenito Riograndense mantiveram alguma formalidade nos arranjos, mas ganharam com as fusões harmônicas e rítmicas. À precisão intensa de Nassif somou-se o contraponto da leveza do violão de Ezael, em músicas como O que eu disse que eu quis dizer. Sua passionalidade latina encontrou a batucada maliciosa do baterista. Também contrastando de forma harmônica, o walking bass quebrou um pouco a recorrente síncope de suas peças tangueiras.
Ao final, o compositor comentou que assistir a um show instrumental é viver outra dimensão, ainda mais em uma cidade grande como Porto Alegre. Poderíamos ressalvar que essa imersão depende do grau de fruição proporcionado. Sem poder responder pela totalidade do público, confesso que saí do teatro naquela noite assoviando a valsa com que eles encerraram o show.
Rodrigo Nassif |
Leandro Schirmer |
Carlos Ezael |
Samuel Cibils |
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