Um beijo em Antônio Chimango


A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre atualizou um clássico do regionalismo gaúcho. A opereta "Chimango" contou com grande elenco no último final de semana, para ratificar a entrada da cultura do estado no século XXI. Tudo sem preconceito nos campos da estética e do comportamento.

Um poema tido como panfletário na época do lançamento, 1915, acabou sendo uma das principais referências do regionalismo sul-rio-grandense. A sátira política motivava a publicação de Antônio Chimango, assinada com o pseudônimo Amaro Juvenal. Mas o poemeto campestre de Ramiro Barcelos não perdeu o sentido e o valor literário quando os anos se passaram e a disputa política mudou as cores. Tornou-se um clássico.

A pesquisadora Léa Masina compara a obra a outras de autores argentinos e uruguaios, que têm por característica a redondilha como verso dominante, estrofes escritas em sextilhas e o tipo gaúcho como tema. Ou seja, a principal influência é platina, apesar do Brasil viver o pré-modernismo na época, que convocava cada estado da federação a eleger um tipo humano como referência regional.

Leia aqui o texto:
Relendo o poema Antônio Chimango - Léa Masina

Alvaro RosaCosta interpreta Lautério
Uma obra clássica atravessa gerações. Fui me familiarizar com Antônio Chimango não através do livro, mas ouvindo o LP gravado em 1982, com música de Martin Coplas e participação de Paulo Dorfmann, Luiz Carlos Borges, outros músicos e atores, incluindo meu pai, Nelson Ribas. Por tanto, além de disco, sempre foi um souvenir raro lá em casa. E foi com um olhar afetuoso que assisti à nova versão preparada pela Ospa, com composição do maestro Arthur Barbosa, libreto de Alpheu Godinho e direção cênica de Marcelo Restori.

Prestes a completar cem anos, o poemeto obtém agora uma leitura operística que incluiu a contestação super em voga dos preconceitos que involucraram o regionalismo durante anos. Refiro-me primeiro a uma dança em que um gaúcho veste saia branca, guaiaca e mostra o dorso nu. Entendo a cena como uma expressão que aproxima os mundos feminino e masculino, tão separados em gêneros fixos ao longo de décadas de tradicionalismo.

Noutra dança, na ronda que representa o baile na estância, uma piguancha envolve a cabresto curto uma china e taca-lhe um beijo. Se precisar de um glossário, lembro que tanto piguancha quanto china referem-se a prenda, ou mulher gaúcha.

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Além dessas performances que trazem as questões de gênero, outra desmistificação é provocada. Ao contrário do cowboy da propaganda de Marlboro, principal referência para o estereótipo gaudério, os protagonistas da história não são brancos. Os formidáveis atores Sirmar Antunes e Alvaro RosaCosta interpretam os papéis principais, que concentram a maior parte dos cantos: o capataz e o narrador Lautério. Vestidos com pilchas tradicionais, seriam o perfeito reforço do estereótipo, não fosse um detalhe: a negritude. Suas roupas, limpas e pomposas, combinam com poses imponentes, de gestos largos e viris. Mesmo que o texto original tenha previsto que o narrador era mulato, interpreto a presença destes dois negros fortes pilchados, dominando maior parte das cenas, como algo simbólico. Ainda mais quando comparados ao personagem franzino e branquinho do Chimango, sempre menosprezado e preterido como um ser sem virtudes.

Depois destas propostas cênicas, o show circense de boleadeiras nem pareceu estranho ao ambiente de gala do Theatro São Pedro. O lustre com pingentes de cristal e as cadeiras estofadas até poderiam remeter-nos ao passado. Mas não há como se enganar, a releitura deste clássico indica que estamos de fato no século XXI.

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