Poa Jazz Festival atesta que a humanidade está longe do fim

O cypher mineiro Nivaldo Ornelas prestou homenagem ao norte-americano John Coltrane
Definitivamente, estamos vivendo o futuro. Quando ele eclodiu, materializando um shopping imenso, onde antes havia casebres e canchas de futebol, os humanistas ficaram pessimistas. Mas não imaginavam o que estaria por vir. A construção high tech não abrigaria apenas relações de compra e venda. Sediaria um evento formidável, transformando-se durante três dias em templo sagrado da criatividade musical. Parece sonho, idealismo, mas a primeira edição do Poa Jazz Festival é um sucesso.

O público estacionava seus carros, após falar com uma máquina-cancela. Confirmava a compra do ingresso via internet, mostrando um código de barras. Descia longas escadas-rolantes, num átrio asséptico envidraçado, até o subsolo. Lá, onde ninguém imaginava que existia shopping, um centro de eventos superequipado abria as portas. As luzes se acendiam e, para eventual surpresa dos apocalípticos, seres humanos subiam ao palco.

Neste tempo de se apegar a artefatos como fossem extensões do nosso corpo, o que pensar de exímios instrumentistas? Poderíamos concluir que humanos geniais, de técnica apuradíssima, também são seres híbridos. É difícil entender quando começa o braço e termina o saxofone, por exemplo. Deste ponto de vista, seriam os jazzistas ciborgues?

O oráculo albino Hermeto Pascoal, sentado ao piano, até parece normal 
Hermeto Pascoal, maior atração do festival, dizem não ser de Alagoas, mas de outro mundo. Essa hipérbole, talvez revele a tese de que o músico é mais que humano. É suspeito o fato do compositor ter batizado um álbum em 1980 de “Cérebro Magnético”. Eu prefiro acreditar que ele é muito humano. As qualidades que o velinho mostrou até hoje nos palcos do mundo inteiro, das quais tivemos uma pequena mostra no show do Poa Jazz Festival, são as mais terráqueas possíveis.

Fosse robô, Hermeto sentaria ao piano, seguiria um programa de execução técnica dificílima e deixaria o público pasmo com a rapidez, afinação e perfeição da performance. No entanto, o que aconteceu não foi frio assim, até porque ele é multi-instrumentista. Ocorreu que o compositor paulista Filó Machado havia recém deixado o palco, após o show mais surpreendente do festival. Então, logo no início, o alagoano pediu pro pianista de sua banda ceder lugar. Sentou e cantou, sem microfone, uma declaração de amor a Filó e sua música. Não era bem repentismo, era uma balada romântica improvisada. O público ficou enternecido, e ao final só os menos humanos conseguiram conter a emoção, quando o homenageado subiu ao palco para abraçar o mestre.

Só a imensa sensibilidade do artista para protagonizar episódio catártico e simbólico como esse. Demonstra a fascinante fruição proporcionada nestes três dias seguidos. Diante da platéia, em carne e osso, a música mais criativa, e por isso mundana. Boa parte da comunidade musical de Porto Alegre, que não se encontra nem no Facebook, confraternizou lá.

O festival também provou que o público ainda existe, não é apenas uma massa reativa que curte os clipes mais populares. É plural e gosta de ouvir música ao vivo, mesmo privado do poder de pular pra faixa seguinte. Vi na platéia tecnófilos e tecnófobos: rastafári, hypster, judeu ortodoxo, camiseta preta e até bombacha.

Não foi virtual, mas acabou. O público deve ter ido pra casa sonhando com a próxima edição, num futuro próximo. Não sem antes pagar o estacionamento, inserindo um chip numa máquina-cobradora.

O morpheus de Ribeirão Preto, Filó Machado, faz a plateia responder a suas frases improvisadas 

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