Travessia do Atlântico

Zarpando do Caribe para o Açores

O Rio Grande do Sul tem a sua história determinada pela navegação. Sua tradição de velejadores se origina nas grandes navegações de descoberta, conquista e ocupação do território brasileiro. A expansão e a manutenção do território rio-grandense dependeram fundamentalmente dos homens de timão e convés, dos reguladores de velas, da coletividade de bordo. Por sua costa transitou os descobridores. No século XVIII, seus desbravadores ingressaram pela barra de Rio Grande ostentando os mastros de suas embarcações de cascos salgados, lavados no dorso da laguna dos Patos. Sumacas e faluas, batéis exploradores, dingues encontraram-se com as canoas dos índios navegadores, que serviram de seus primeiros práticos para percorrem suas veias de rios e arroios.

O imenso Jacuí, cuja história e tentativa de assassinato vêm sendo mostrada pelo Trezzi e o Emílio, proporcionou-lhes a visão, a exuberância e o desafio de um “rio grande”. Nomeava-se o território que teria personalidade política no futuro. Até o início do século XX, as águas de suas lagoas, lagos e rios circulariam mercadorias e gentes, distribuindo-as pelo espaço de uma nova região, misturando-as em suas águas, fazendo surgir, pouco a pouco, um novo povo, diversas identidades, interligadas em novos sentidos.

Apenas recentemente está se firmando a consciência que enquanto o cavalo serviu para os entreveros de escaramuças, o barco representou a geopolítica.

Gradativamente, o estado que dependeu tão significativamente da navegação vai singrando sua importância, chegando à mídia, com seus ventos de história.

Quando nos lançamos ao mar, de certa forma, vamos recolher as velhas rotas que nos trançam aos acontecimentos ungidos por Netuno, robustos como a força dos povos, mas estamos também dispostos ao desconhecido, ao imponderável, às técnicas e aos conhecimentos dos homens de bordo; à solidão que desafia e ensina, ao silêncio dos dias e noites intermináveis entre duas dimensões inatingíveis – o céu e as profundidades do mar.

Cada um de nós possui seus objetivos, ou mesmo nenhum que se possa medir com a régua do pensamento instrumental, do cálculo de inúmeros dígitos, mas nenhuma sensibilidade, sem a possibilidade de somar qualquer sentido humano. Além do plano de navegação, nenhum tem certeza sobre o que move os outros tripulantes. O Ademir de Miranda, o mais experiente, não é prolixo nas justificativas. Construtor de seus próprios barcos iniciou com a fantasia dos iniciantes. Seus veleiros foram aumentando de tamanhos, porém uma frase permanece firme a bordo: “sonho em fazer uma travessia desde a construção do meu Samoa 29”.

O Wollf, gaúcho de Porto Alegre, acostumado às águas do Guaíba e da lagoa dos Patos, pisa no convés como quem ruma na “continuação de um projeto de vida”.

Existem bem mais que águas profundas nos recônditos de nossos rituais e preparativos expedicionários.

Andaremos por rotas antes navegadas por comandantes que saltam dos livros da história para o nosso cotidiano, como Colombo, Américo Vespúcio, Cabral, Magalhães. Fantasmas de piratas bafejam as águas por onde passamos e, agora, a partir desta terça-feira, vamos mais além, provocá-los para um trago de memória abissal, no oco do tempo, no detalhezinho de milhões de experiências e dilemas de anônimos tecedores de nossos passados, os quais tiveram a herança do silêncio. Slocum vem ao Entre Pólos tomar mais um mate, o velejador solitários que fez a volta ao mundo em protesto ao término de uma era – a dos veleiros mercantes - singrou as águas da bacia do Prata, a costa brasileira. Estamos fazendo encruzilhadas com sua esteira.

Algo imensamente sinergético e desafiador, como um espectro, pede respeito e admiração ao mundo quase impenetrável da marinharia. De certa forma, o futuro que se aproxima é um passado que nos provoca e nos ameaça.

Estamos em véspera de zarpar para os Açores. O barco Entre Pólos foi trazido para o Caribe em dezembro. O capitão Ademir de Miranda, seu proprietário, está em St. Maarten desde o dia 25 de abril, ultimando os preparativos para a partida. O João Pedro Wollf (do barco Arcobaleno) chegou dia 2, sexta, e eu (do veleiro Kaingang) no dia seguinte. Formaremos a tripulação para a travessia do Atlântico.

A viagem começou em agosto de 2007, quando o Ademir, eu, o Flávio Fiala e o Daniel Muños, em um inverno pavoroso, partimos de Porto Alegre. O Flávio ficou em Rio Grande, enquanto os demais enfrentavam ventos de 47 nós na costa gaúcha. Um nó equivale a 1.852 km/h, com temperaturas rigorosas e sensação térmica abaixo de zero.

Foi uma longa jornada, várias tripulações, um primeiro lugar na Regata Oceânica Internacional Recife – Fernando de Noronha, na classe veleiros de aço.

A preparação para a travessia requer uma elaboração quase cirúrgica. Além das previsões do tempo, com furacões, degelo e ventos fortes no Atlântico Norte, tem os cuidados com o barco, a projeção para a alimentação a bordo, os cuidados com a saúde. Nossos planos de saúde são absolutamente inúteis na imensidão atlântica, dependemos de nossa farmacinha, de nossos cuidados, de nossas pajelanças e tambores.

Ontem, por exemplo, durante a revisão do rancho armazenado anteriormente, o Ademir percebeu que nossas provisões estavam praticamente contaminadas. Colônias de bichos, broquinhas e outros salteadores minúsculos, haviam infestado e se banqueteavam, habitando aos milhares nossos sacos de farinha de trigo – matéria para a feitura do nosso pão de bordo, lambuzavam-se em nossos pacotes de açúcar, faziam trilhas de invariáveis contornos e desenhos em nosso estoque de bolachas, emaranhados de túneis em nossas reservas de massas, e povoaram consideravelmente nosso arroz, etc., etc.

Em conseqüência, o tempo que seria empregado para a revisão do estaimento e do mastro do veleiro, para recarregar os tubos para mergulho, e outros preparativos foi subtraído pelos contingentes dos batalhões minúsculos e subterrâneos, e substituído por nova visita ao mercado de Philipsburg, no território da soberania holandesa da ilha. E lá deixamos mais 600 dólares do nosso controlado orçamento para repor os estragos dos fuinhas medonhos.

Agora, novamente, nossos armários e cavernas do Entre Pólos estão abarrotados. Recarregamos a geladeira e um pequeno freezer, que acabamos de instalar para a travessia. A carne é pouca, gado e galinha. Pretendemos suprir parte de nossa necessidade protéica com o molinete e sua linha de arrasto. No mais são algumas conservas, queijo, salaminho, sucos, seletas e compotas.
Estamos atracados no Lagoon, uma lago no interior da ilha. A saída ao mar ocorre através de um canal. A ponte que o atravessa é aberta em alguns horários diurnos. Os bichinhos sabotadores de nosso rancho, na verdade, provocaram ainda outro transtorno. Não poderemos mais zarpar na primeira abertura, às 9:00. Esperamos concluir a preparação do veleiro durante o dia para zarpar no final da tarde. Deixaremos para ajeitas as coisas que não envolvem segurança durante a singradura.

Nossas almas já estão no mar. Em terra tudo passou a ser moroso, os problemas se avolumam. Após a revisão estrutural do barco nesta terça-feira, terminar o plano de navegação, inserir as coordenadas no plotter e nos GPSs, apontaremos a proa para o Açores, daremos as velas ao vento, e que Netuno e sua tripulação de exímios navegadores olhem por nós. Em até 17 dias pretendemos chegar ao Açores, caso não tenhamos nenhum contratempo grave, que nos obrigue a mudar de rota, especialmente por tempestades ou condições do mar. Margearemos o Triângulo das Bermudas, estaremos atentos a ameaça de furacões. Faremos turnos para nos revezarmos na navegação.

Até Lisboa serão mais 10 dias. Nosso plano de navegação prevê 27 dias para a travessia. Os demais serão para as ancoragens nas ilhas do arquipélago dos Açores.

Deveremos velejar, no mínimo, 3.400 milhas náuticas até Lisboa, em uma estimativa de rota em pontos retos. Certamente será bem mais que isso.

Para os não iniciados, uma milha náutica corresponde a 1.852 metros.

Desde Porto Alegre, a partir da nossa saída em agosto de 2007, o veleiro Entre Pólos já navegou 5.300 milhas náuticas.

A previsão é que da capital dos rio-grandenses, desde as águas saudosas e maltratadas do Guaíba, a Lisboa, se faça 8.700 mn, isto é, 16.112 km.

Que os bons ventos nos acompanhem.

Ainda bem que o vento – combustível desde a origem dos tempos - continua sem custo, como diz o Ademir de Miranda.

Tau Golin, Marina Lagoon, St. Maarten, 6 de maio de 2008.

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