Trovadores na idade mídia

Chico César e Vitor Ramil no Theatro São Pedro, Porto Alegre RS, 19 de outubro de 2018.

Em pé no palco, começaram entoando estrofes intercaladas que contrastavam personagens de regiões distintas. Chico César cantava versos de “Beradêro”, ambientada na nordestina Catolé do Rocha. Vitor Ramil cantava “Gaudério”, localizada no pampa sulino. Ambas canções, conhecidas do repertório autoral de cada um. Logo a plateia começou a aplaudir em cena aberta. Foi quando o paraibano entoou: “E os sem-amor, os sem-teto/ Os sem-paixão sem alqueire/ No peito dos sem-peito uma seta/ E a cigana analfabeta/ Lendo a mão de Paulo Freire”. Era um prenúncio do clima que vigoraria naquela noite, a primeira de três, no Theatro São Pedro em Porto Alegre, às vésperas da eleição presidencial.

Aquela performance de abertura bem que parecia trova ou embolada. Falavam de facadas e balaços. Por mais que as letras de cada um não estivessem diretamente atendendo a uma contenda de réplicas e tréplicas, a sequência meio dadaísta proporcionava um diálogo. O gaudério parecia gabar-se de sua valentia, enquanto o nordestino lamentava, ainda consciente, de ter sido ferido. Relações entre poesia e realidade ficavam por conta da audiência.

O tom de trova se desdobraria em bravata e empulha nas conversas entre os dois e o público, durante todo o show. A diferença entre as estéticas “do frio” e “do fogo” seria um dos temas mais acionados. As associações ao atual contexto político também persistiriam. Mas o formato predominante seria o da canção, especialidade deles, que por mais contemporânea que seja, também é tributária da cultura trovadoresca.

Sentados, aos violões, cantaram a primeira parceria da dupla que já fora registrada em disco, “Olho d'água, água d'olho”, do álbum Campos neutrais, lançado ano passado pelo gaúcho. A seguir, interpretaram canções de Chico César, como “Moer cana” e “É só pensar em você”, e de Vitor Ramil, como “Foi no mês que vem” e “Espaço”. Também estrearam uma nova parceria, “Os trens”, ainda inédita.

O trovador é aquele que vai de povoado em povoado entoando poesia e levando informação. O cantautor é aquele que, empunhando o violão ou a viola, protesta cantando como quem fala. Seja no século XVI na Europa, ou seja nos anos 1960 na América, esta cultura individualizada de expressão musical persiste, reinventa-se e abarca novos contextos. Em um show às vésperas de uma eleição presidencial no Brasil, em que a ameaça do fascismo é real, cada palavra que soa do indivíduo no palco é recontextualizada pelo público e se torna expressão coletiva.

E foi assim. Antes de tocarem “Palavra mágica”, de Chico César, o compositor explicou o vocábulo “arenguêra”, do refrão. Seria uma expressão regional paraibana para se referir a mulheres que defendem com firmeza seu ponto de vista. Então a plateia respondeu gritando: “ele não!”. Faltava uma semana para o segundo turno. Assim, durante a performance, a plateia gaúcha participou cantando com entusiasmo o termo nordestino recém-explicado.

Após a milonga “Deixando o pago”, Chico César afirmou que pensa sempre em Brizola e Teixeirinha quando escuta ou canta essa música: “sei que pra muitos não é a referência mais bacana, mas meu primeiro contato com a música gaúcha foram os discos de Mary Terezinha e Teixeirinha”. Vitor Ramil comentou que esse preconceito com o cantor popular é uma coisa datada, pois o artista sempre foi bem reconhecido e querido pelo público gaúcho.

Após a reverência a esses trovadores midiáticos sulistas, na segunda parte do espetáculo, apresentaram um bloco inteiro para reverenciar Bob Dylan, o mestre internacional do trovadorismo contemporâneo. Chico César leu um poema inédito, inspirado no estadunidense, “O homem sob o cobertor puído”, sobre desigualdade social. A plateia aplaudiu em pé. Na sequência, seguindo o tom de protesto, tocou “Reis do agronegócio”, interpelando diretamente a ruralistas e deputados. O estilo da canção é bem dylaniano, com direito a letra longa e quebras na métrica. Seguindo no mesmo clima, Vitor cantou à capela a canção que compôs a partir de poema do português Antonio Boto: “Se eu fosse alguém (cantiga)”. Fechando o bloco de Bob Dylan, tocou “Joquim”, versão em português de “Joey”.

Chegando ao final da noite, Chico César quis dedicar a próxima canção a uma mulher que estava no teatro e que tatuou em sua pele o verso: “amor sem anestesia”. A canção era “Estado de poesia” e a mulher era a candidata a vice-presidente Manuela D'Ávila. A plateia levantou-se e, virando em direção a ela, aplaudiu por longos minutos. As luzes do teatro se acenderam. Após esse clímax, os cantautores ainda tocariam “Astronauta lírico” e, após o bis, “Estrela, estrela” e “Onde estará o meu amor”.

O tom amigável e bravateiro dos trovadores seguiu a noite inteira uma tradição respeitosa e hospitaleira. Bem diferente das notícias falsas que proliferam em nossos dias midiáticos atendendo claramente ao objetivo de tentar levar à presidência um candidato racista, misógino, violento e desqualificado. Deixaremos a boa cultura trovadoresca recolher-se apenas aos redutos presenciais das artes nos próximos anos? As réplicas e tréplicas típicas dos debates democráticos serão extintas da esfera pública da mídia?


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