De sangue doce, Pedro Ribas chega na roda com a turma toda


A canção, por decorrência das tecnologias de gravação e transmissão, passou a ser hegemonicamente uma criação individualizada. No ano que findou, condecoramos um mestre nesta arte com o prêmio Nobel de Literatura. Podemos assim notar que, desde a era da oralidade, a poesia musicada seguiu uma tradição de trovadores solitários, preterindo as cantigas de roda.

Quando escutamos uma canção ou um álbum inteiro de um cancionista, percebemos a identidade do seu autor latente nos versos entoados e no jeito de cantar. Somos tocados por algo elaborado às vezes no recôndito de um apartamento, no exílio de uma montanha, ou na solitude da madrugada. O ato criativo privado é gravado, depois se espraia incontrolavelmente, ou, quando reproduzido ao vivo, comove de pequenas rodas de violão até estádios de futebol.

Cientistas observaram que nos rincões meridionais brasileiros, compositores lapidam letra e melodia visando troféus legitimadores. Às vezes, o fazem em segredo, podendo contar com a cumplicidade de um parceiro. Alguns acreditam estar alcançando uma fórmula formidável para vender milhares de cópias e animar centenas de bailões. Poucos conseguem.

Diante deste retrospecto regional e internacional, que tipo de canção sai fora da curva neste tempo de individuações teleguiadas? Poderia ser aquela criada coletivamente, sem finalidade prática ou calculada, a não ser a de confraternização e expressão conjunta. É o que acontece neste primeiro disco do santa-mariense Pedro Ribas. Figurativamente, está lá na maior parte das faixas a circularidade das rodas de capoeira, de samba, de umbanda ou de rodeio. E na ficha técnica, a lista sempre de mais de quatro autores em cada composição. Muitas foram gestadas em ocasiões festivas e criativas, tais como o festival da Taipa, que ocorre em Uruguaiana todo início de ano, desde 2000. Há relatos de que lá, numa dinâmica de criação livre e fraterna, promovem brainstorms sobre temas específicos e vão construindo em ato cíclico o produto final, cantado costumeiramente em mais de uma voz.


Mesmo com esta evidente marca coletiva nas composições e nos arranjos, os fonogramas registrados em Ladainha Campeira também evidenciam a maturidade musical do solista desta roda, que entoou seu timbre límpido e seguro para jogar com os coros (dos amigos em uníssono). A interpretação de Pedro Ribas se soma às inúmeras leituras cantadas Rio Grande afora por artistas como Nandico Saldanha, Rafael Ovídio, Túlio Urach e Zelito Ramos Souza, e já impressas em discos de parceiros, como Petiço Mapa-Mundi, gravada por Pirisca Grecco e por Cesar Santos. Com o detalhe de que todos participam do novo álbum.

Saiba mais sobre Ladainha Campeira no site de Pedro Ribas.

Outra característica do álbum é provocar um estado de espírito otimista, um clima "pra cima". Talvez um forte apelo à fraternidade, que denota uma religiosidade não proselitista. Afinal, a religião na canção regional do sul tem sua importância. Antropólogos já registraram expressões de origem açoriana, Terno de Reis, e africana, Ensaios de Promessa, que comprovam isto. No palco de festivais nativistas, o professor Renato Ferreira Machado tem apontado há alguns anos a influência da Teologia da Libertação em algumas letras. Mas em Pedro Ribas, não é a referência cristã que predomina, embora cite a figura de Deus com letra maiúscula em algumas canções. A influência da cultura afro-brasileira é que dá mais o tom. Aquela híbrida e emancipadora, combinada nos terreiros ao longo de séculos, e indiferente às ondas fanáticas ou autoritárias dos diferentes tempos.

Observando desde o mundo profano, também podemos anotar aqui no caderninho uma hipótese. Estaria a canção do sul do mundo num momento de retorno à coletividade? Não seria um regresso, mas um estágio de complexificação proporcionado por buscas alternativas de ser na pós-modernidade, insurgentes à armação da técnica que domina as relações e a arte. Não se trataria de simples retorno à oralidade, à cantiga passada de pai pra filho. Seria mais uma busca pela essência da canção, a contrapelo de suas finalidades modernas funcionais. Uma busca de sua dimensão comunicativa, sem restringir-se à via unilateral de emissor e ouvinte, mas agregadora e compartilhada. Assim, sua criação não poderá mais ser atribuída a nenhuma genialidade particular, nem gerar idolatrias, tampouco sacralizações. Será de todos, para todos.

Mas um trofeuzinho não faz mal a ninguém. Aqui a turma recebia a Calhandra de Ouro na Califórnia em 2013.
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