Apoteose da música instrumental brasileira no Porto Alegre Jazz Festival

Rodolfo Stroer, Tutty Moreno, André Mehmari e Mônica Salmaso
Apoteose: termo exorbitante que proporciona ênfase sensacionalista a uma manchete jornalística. Apoteose: endeusar, deificar uma pessoa ou algo devido a alguma circunstância excepcional. Apoteose: praça do bairro Cidade Nova, no Rio de Janeiro, utilizada para desfiles de carnaval e, por conseguinte, síntese de brasilidade.

Por culpa da crise econômica do país, a terceira edição do Porto Alegre Jazz Festival foi adiada de novembro de 2016 para o penúltimo final de semana de janeiro de 2017. “Pior”: limitou o casting de artistas ao circuito nacional. Mas, embora tenha sido realizada com mais dificuldade, teve a mesma produção impecável da primeira e segunda edições, o que talvez indique que o evento é consistente e que deverá perdurar, independente dos cenários vindouros. Em coletiva de imprensa nesta sexta-feira, o crítico musical Zuza Homem de Mello arriscou dizer que o POA Jazz é o mais significativo do Brasil na atualidade.

Se nos tempos difíceis resistem os que possuem alguma vantagem competitiva, nestes mesmos tempos, a limitação para contratar artistas internacionais provocou uma atenção concentrada nas cenas do Rio Grande do Sul e nacional. Apenas a dupla Adrián Iaies e Rodrigo Agudelo da vizinha Argentina veio além-fronteiras. Durante aquela coletiva, na tarde de início do evento, críticos e jornalistas, a exemplo de Zuza e de Paulo Moreira (produtor do programa Sessão Jazz, na rádio FM Cultura), concordaram tratar-se de um momento profícuo sem precedentes na música brasileira. Cada vez mais jovens músicos enveredam pela carreira instrumental e alcançam nível profissional e artístico muito alto, o que há alguns anos ocorria esporadicamente. Uma mostra disto se deu com o show do grupo local Kula Jazz, que empolgou o público na segunda noite e voltou para o bis.

Outra evidenciação gerada pela recessão econômica se deu no campo simbólico, representativo. A curadoria de Carlos Badia foi tomada por Música Instrumental Brasileira. Não se trata de uma sigla popular, nem define satisfatoriamente um gênero, apesar de se observar na história inúmeros nomes consagrados que construíram esta “escola” durante os séculos, de Chiquinha Gonzaga a Hermeto Pascoal. Ainda assim, boa parte das atrações desta 3ª edição do POA Jazz poderia ser alcunhada desta forma, mesmo contribuindo para diversificar e dificultar mais a elaboração de alguma frase sintética sobre o que Música Instrumental Brasileira significa.

Este artigo foi publicado no site A mulher do Piolho

Na primeira noite de shows (20/01), o duo formado pelos paulistas Paulo Bellinati e Marco Pereira invocou atenção especial ao que poderia ser dito com pompas conceituais: violão brasileiro. Apresentaram um trabalho de arranjos para temas de um dos grandes mestres, Dilermando Reis, e composições próprias que já cumpriram estrada. Bellinati havia se apresentado em 2014 no POA Jazz Festival com o grupo Pau Brasil. Desta vez, retomou a parceria com o velho amigo Marco Pereira e trouxe de novo seu instrumento de cordas de aço que toca com palheta, utilizando uma técnica muito própria, a qual faz o violão soar macio e harmônico. Esse modelo de violão, contou no palco, é dos anos 1930, típico de serestas. Seria um forte indicativo de brasilidade, útil e suficiente para a incorporação de uma música instrumental nacional? Para além do tipo de violão, poderíamos enfatizar aqui sua forma original de tocá-lo. Outro indício de ziriguidum, que arrancou aplausos entusiasmados do público, foi quando a dupla batucou na caixa acústica dos violões.

A atração seguinte, também de São Paulo, demonstrou a mesma “malemolência” percussiva, desta vez nos tampos do imenso baixolão e do piano de cauda. O duo Bailado apresentou no palco do festival o repertório do disco de estreia lançado no ano passado. Entre os temas, homenagens a grandes compositores pianistas. Em O último lundu de Ernesto, composto por Marcos Paiva (contrabaixo), a deferência a Ernesto Nazareth. Já em Gauche, Daniel Grajew (piano) homenageia Chiquinha Gonzaga. Agora, a representação brasileira mais evidente viria no final, com um arranjo original e consistente para Tico-tico no fubá (Zequinha de Abreu), conhecida além-mar na voz de Carmen Miranda. No entanto, um dos pontos altos do show foi Saudade (Marcos Paiva), peça de melodia rica e sensível. Não transpira referência direta, nem presta tributo. Vem de um sentimento particular do compositor, coroado não por bananas e abacaxis, mas por uma palavra quase intraduzível em outros idiomas.

Leia aqui sobre as primeiras edições:
1º POA Jazz Festival atesta que a humanidade está longe do fim
Voto no 2º Porto Alegre Jazz Festival

Marcos Paiva, do Duo Bailado
Seguimos contrapondo acentos tupiniquins e autenticidades no show de maior expectativa na primeira noite do festival. O quarteto capitaneado por André Mehmari (piano) foi formado de improviso para a ocasião (isto é jazz!) com participação especial de Mônica Salmaso (voz), Rodolfo Stroer (contrabaixo) e Tutty Moreno (bateria). O que esses quatro artistas consagrados poderiam realizar juntos no palco? André Mehmari, que nos últimos anos tem produzido intensamente com uma diversidade de parceiros, monta harmonias complexas em cima de temas variados, desconstruindo-os e deslocando-os da ambiência original. Não podemos deixar de observar também sua característica performance, de caras e bocas, e movimento do corpo e das mãos, nos limites impostos pelo banquinho e as teclas do piano. Só aí já poderíamos referendar a existência de uma indefectível Música Instrumental Brasileira?

Precisaria que a cantora batucasse com os dedos em um tamborim para sinalizar pertencimento e identidade? De fato ocorreu. Mas o número percussivo de Mônica Salmaso significou pouco enquanto cocar, perto da enormidade do que cantou naquela noite. Não é uma crítica à cantora, mas um descolar-se das simbologias contidas nos artefatos. Afinal nós que as criamos e valorizamos. E naquela noite este quarteto desconstruiu clássicos nacionais, principalmente de Dorival Caymmi, de maneira formidável.

Na 3ª edição do POA Jazz Festival depreendemos que não basta nascer no Brasil pra ser um instrumentista brasileiro. Em teoria, qualquer japonês pode com muito treino e dedicação inserir um pandeiro em sua performance e parecer nativo. É preciso apropriar-se de elementos da tradição, reconstruir processos criativos e plasmar um estilo próprio sincrético. Apenas tomar de empréstimo citações consagradas para se autorrepresentar também não faz um jazzista.

Mônica Salmaso e André Mehmari

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