A gênese da moderna canção urbana porto-alegrense
Ou a fábula de Dona Dirce, que serviu Almôndegas ao pequeno grande Arthurix
O músico e compositor Arthur de Faria (Silva) também é pesquisador dedicado. O porto-alegrense se debruça há mais de 10 anos sobre a história da música no Rio Grande do Sul, com ênfase na capital. Muita gente já conhece suas publicações no portal Sul21 (leia aqui), ou assistiu à série audiovisual “100 Anos de Música em Porto Alegre”, exibida na TVE/RS e no cinema (saiba mais aqui). Ou há mais tempo, alguns tiveram acesso a uma coleção de cinco CDs com encarte gigante sobre a música gaúcha no século XX, com patrocínio da CEEE e assinado por ele. Agora, poucos sabem que no meio desta empreitada altruísta, houve também espaço para o investimento em sua formação acadêmica. Em 2012, Arthurix (pros íntimos) defendeu dissertação sobre a gênese da moderna canção urbana de Porto Alegre, contando a história do grupo-síntese daquele tempo: Os Almôndegas.
Para esta pesquisa, preferiu abolir o rótulo Música Popular Gaúcha (MPG), pouco quisto entre os cancionistas. Ao contrário, o apelido da dita cuja defendida na ocasião pegou: a dissertação de Arthur atende por Dona Dirce (não só pros íntimos).
Leia aqui na íntegra:
“Nóis sêmo umas almôndega” - Os Almôndegas e a gênese da moderna canção urbana porto-alegrense
É com esta prosa recheada de coloquialismos, afetos, aproximações e personalizações, que o Me. Silva apresentou à academia (programa de pós-graduação em Letras, da UFRGS) um trabalho importante para a música brasileira. Nós, gaúchos, mais que os outros, precisávamos pontuar e reconhecer aquele momento ímpar em nossa musicalidade, para olharmos no espelho do tempo e repensarmos nossa deambulação presente.
Separei algumas passagens deste trabalho para dividir aqui no blog, principalmente as conclusões do autor e depoimentos formidáveis, como os de Kledir Ramil e Bebeto Alves. Também proponho ao final da leitura um jogo de palavras-cruzadas. Os mais antenados podem ir direto pra diversão e responder tudo. Os que tiverem alguma dificuldade, terão que buscar as respostas aqui no texto, o que não será nenhum martírio.
Se eu fosse fazer uma resenha desta pesquisa, escreveria que, no final das contas, a conclusão de Arthur foi que, a partir de 1975 criou-se um sistema da música popular e da moderna canção porto-alegrense. Este ano teria sido importante, primeiro por causa das Rodas de Som, shows semanais no Teatro de Arena, mostrando a música que estava sendo criada na cidade. Na mesma época, ainda seriam promovidos os festivais Musipuc e a rádio Continental começaria a gravar em estúdio os artistas locais, através do programa de Julio Fürst (nos anos seguintes, a emissora também promoveria 12 concertos Vivendo a Vida de Lee). Com palco e rádio, o público cresceu e lotou os shows. Gravaram-se e venderam-se LPs (o primeiro teria sido d'Os Almôndegas, claro). Pode-se afirmar que estava criada uma nova cena musical local.
O grupo-síntese desta transformação era integrado por compositores/cantores, que partilhavam daquela cena emergente de festivais na capital, entre eles os irmãos Kleiton e Kledir, que mais tarde seguiriam carreira em formato dupla. Só as empreitadas de kombi no Rio de Janeiro, onde foram gravar seus discos, já valeriam um livro sobre Os Almôndegas. Estabelecidos no Brasil Tropical, chegaram a emplacar música em trilha de novela da Globo.
No quesito estético, vamos recorrer ao email de Kledir Ramil (em resposta a Arthur) sobre a “gênese do fazer almondegueano”:
“O que chegava pela fronteira incluía Atahualpa Yupanqui, Jorge Cafrune, Noel Guarany, Violeta Parra, Mercedes Sosa, Astor Piazzolla, Les Luthiers... E é interessante analisar o que os argentinos da nossa geração vinham fazendo na mesma época: Sui Generis, La máquina de hacer pájaros, Seru Girán... E continuou com Charly Garcia, Fito Paez, Leon Gieco, Pedro Aznar... Quando descobri a nova música que vinha sendo feita do outro lado da fronteira fiquei fascinado, tive a sensação clara de que ‘somos todos hermanos’ - é a mesma pegada, as mesmas influências, a mesma tribo.
A isso, some-se o ¾ já bastante comentado na Dirce... Evoluções de rancheiras, chacareras, chamamés, guarânias... A música Mantra, do Zé do Kleiton, é pra mim o melhor resultado desse caminho - na continuação, Vira Virou do Kleiton, por exemplo, é filha disso tudo.
Enfim... Divaguei... É porque acredito que na análise dos ritmos pode haver uma chave - havia sempre em nós uma vontade de fazer a música gaúcha do nosso tempo, sem sermos saudosistas e nem iconoclastas, até porque não havia uma linha evolutiva que precisasse ser rompida e questionada. O que se fazia era natural para todos ali: usar os ritmos tradicionais da nossa terra, com uma pegada mais contemporânea, alinhada com a nova música popular brasileira que surgia depois dos festivais e com pop/rock internacional (destaque para a influência fundamental da música dos Beatles e a identificação com Crosby, Still & Nash, a partir de Woodstock). E mais: as letras buscavam uma temática que refletisse o mundo e a época em que se estava vivendo, canções com sotaque gaúcho, sem necessariamente ter que falar das coisas do campo - tudo isso ia surgindo de maneira espontânea, mas vinha sempre acompanhado de reflexões, do fazer consciência. Ou seja: havia um pensamento inteligente por trás de tudo, sem perder a espontaneidade, a natureza orgânica do processo criativo.
Viajei... Acho que botaram alguma coisa nesse chimarrão.”
(Kledir Ramil, por email, Dissertação Arthur de Faria, 2012, pp. 76-77)
Contextualizando, Arthur escreveu que até os anos 60 do século XX as canções interpretadas em Porto Alegre eram majoritariamente compostas fora do Estado. E os compositores que apareciam, inspiravam-se em sambas e ritmos característicos desta música brasileira que era interpretada e ouvida aqui. Lupicínio Rodrigues foi o de maior sucesso, com repertório repleto de samba-canções. Para o pesquisador, esse era um reflexo da Era Vargas, em que o nacionalismo não permitia a diversidade regional.
Os Almôndegas, ao lado de outros artistas, como Carlinhos Hartlieb e os grupos Pentagrama e Utopia (do qual integrava Bebeto Alves), é que iriam quebrar este paradigma e formar um sistema, em que seriam criadas canções e surgiriam artistas na mesma linha. Neste sistema (conceito de Antonio Candido), buscava-se uma síntese possível entre a cultura pop mundial globalizada, a música “dessa comunidade imaginada chamada Brasil e a as tradições - em grande parte inventadas - da música regional do Rio Grande do Sul (e dos países do Prata)”.
Vale destacar a participação de Bebeto Alves. Após o fim da banda Utopia, em 1977, ele participou do show conjunto “Voltas”, com Carlinhos Hartlieb, apontado como principal influência no sentido de fusão do rock com ritmos regionais. O parceiro teria feito Bebeto perceber que podia fazer uma música que o diferenciasse "em meio a tanta informação e tendências que se prenunciavam na música popular, tanto no Brasil quanto no mundo todo” (vide página 91). A seguir, em 1978 ele participaria do LP coletivo de cantautores “Paralelo 30”, produzido pelo jornalista Juarez Fonseca, com Carlinhos, Cao Trein, Raul Ellwanger, Nelson Coelho de Castro e Nando D’Avila.
Da conclusão da Dirce, vou reproduzir aqui um email do Bebeto Alves:
“Acho que ninguém tinha a pretensão de soar gaúcho. A pretensão era fazer alguma coisa original. Tão original quanto possível, um original que nos permitia pensar que ninguém mais no mundo faria igual. Para isso usamos mão do regionalismo como fundo, como justificativa, mas nunca pensamos em limitar a questão, em estreitar o horizonte, digamos, nesse conceito. Era o nosso passaporte para qualquer tipo de comparação, e por isso, talvez, o conflito com o pessoal da tradição, do nativismo que não se sentia bem com essa ‘mestiçagem’, e a incompreensão dos outros.
O que me faz pensar aqui que uma das coisas mais surpreendentes na Espanha, foi encontrar lá, há pouco tempo, uma campanha para tombar o Flamenco, o resultado de uma sorte de culturas, entre o comportamento cigano ao canto árabe, entre outras. E aqui nós nos 'fresqueando’ de puros, como se a mistura fosse alguma coisa de segunda classe.
Nós estamos mortos e não sabemos, há muito”.
(Bebeto Alves, por email, Dissertação Arthur de Faria, 2012, p.131)
Pronto. Agora que entendemos este sistema de uma canção urbana porto-alegrense, não vamos mais confundir com as canções de festivais nativistas, ou com a música gauchesca de bailes e desfiles tradicionalistas. "Nada a ver".
tinha chimarrão nos anos 70 |
Para esta pesquisa, preferiu abolir o rótulo Música Popular Gaúcha (MPG), pouco quisto entre os cancionistas. Ao contrário, o apelido da dita cuja defendida na ocasião pegou: a dissertação de Arthur atende por Dona Dirce (não só pros íntimos).
Leia aqui na íntegra:
“Nóis sêmo umas almôndega” - Os Almôndegas e a gênese da moderna canção urbana porto-alegrense
É com esta prosa recheada de coloquialismos, afetos, aproximações e personalizações, que o Me. Silva apresentou à academia (programa de pós-graduação em Letras, da UFRGS) um trabalho importante para a música brasileira. Nós, gaúchos, mais que os outros, precisávamos pontuar e reconhecer aquele momento ímpar em nossa musicalidade, para olharmos no espelho do tempo e repensarmos nossa deambulação presente.
Separei algumas passagens deste trabalho para dividir aqui no blog, principalmente as conclusões do autor e depoimentos formidáveis, como os de Kledir Ramil e Bebeto Alves. Também proponho ao final da leitura um jogo de palavras-cruzadas. Os mais antenados podem ir direto pra diversão e responder tudo. Os que tiverem alguma dificuldade, terão que buscar as respostas aqui no texto, o que não será nenhum martírio.
isto é um LP |
O grupo-síntese desta transformação era integrado por compositores/cantores, que partilhavam daquela cena emergente de festivais na capital, entre eles os irmãos Kleiton e Kledir, que mais tarde seguiriam carreira em formato dupla. Só as empreitadas de kombi no Rio de Janeiro, onde foram gravar seus discos, já valeriam um livro sobre Os Almôndegas. Estabelecidos no Brasil Tropical, chegaram a emplacar música em trilha de novela da Globo.
No quesito estético, vamos recorrer ao email de Kledir Ramil (em resposta a Arthur) sobre a “gênese do fazer almondegueano”:
“O que chegava pela fronteira incluía Atahualpa Yupanqui, Jorge Cafrune, Noel Guarany, Violeta Parra, Mercedes Sosa, Astor Piazzolla, Les Luthiers... E é interessante analisar o que os argentinos da nossa geração vinham fazendo na mesma época: Sui Generis, La máquina de hacer pájaros, Seru Girán... E continuou com Charly Garcia, Fito Paez, Leon Gieco, Pedro Aznar... Quando descobri a nova música que vinha sendo feita do outro lado da fronteira fiquei fascinado, tive a sensação clara de que ‘somos todos hermanos’ - é a mesma pegada, as mesmas influências, a mesma tribo.
A isso, some-se o ¾ já bastante comentado na Dirce... Evoluções de rancheiras, chacareras, chamamés, guarânias... A música Mantra, do Zé do Kleiton, é pra mim o melhor resultado desse caminho - na continuação, Vira Virou do Kleiton, por exemplo, é filha disso tudo.
Enfim... Divaguei... É porque acredito que na análise dos ritmos pode haver uma chave - havia sempre em nós uma vontade de fazer a música gaúcha do nosso tempo, sem sermos saudosistas e nem iconoclastas, até porque não havia uma linha evolutiva que precisasse ser rompida e questionada. O que se fazia era natural para todos ali: usar os ritmos tradicionais da nossa terra, com uma pegada mais contemporânea, alinhada com a nova música popular brasileira que surgia depois dos festivais e com pop/rock internacional (destaque para a influência fundamental da música dos Beatles e a identificação com Crosby, Still & Nash, a partir de Woodstock). E mais: as letras buscavam uma temática que refletisse o mundo e a época em que se estava vivendo, canções com sotaque gaúcho, sem necessariamente ter que falar das coisas do campo - tudo isso ia surgindo de maneira espontânea, mas vinha sempre acompanhado de reflexões, do fazer consciência. Ou seja: havia um pensamento inteligente por trás de tudo, sem perder a espontaneidade, a natureza orgânica do processo criativo.
Viajei... Acho que botaram alguma coisa nesse chimarrão.”
(Kledir Ramil, por email, Dissertação Arthur de Faria, 2012, pp. 76-77)
Contextualizando, Arthur escreveu que até os anos 60 do século XX as canções interpretadas em Porto Alegre eram majoritariamente compostas fora do Estado. E os compositores que apareciam, inspiravam-se em sambas e ritmos característicos desta música brasileira que era interpretada e ouvida aqui. Lupicínio Rodrigues foi o de maior sucesso, com repertório repleto de samba-canções. Para o pesquisador, esse era um reflexo da Era Vargas, em que o nacionalismo não permitia a diversidade regional.
Os Almôndegas, ao lado de outros artistas, como Carlinhos Hartlieb e os grupos Pentagrama e Utopia (do qual integrava Bebeto Alves), é que iriam quebrar este paradigma e formar um sistema, em que seriam criadas canções e surgiriam artistas na mesma linha. Neste sistema (conceito de Antonio Candido), buscava-se uma síntese possível entre a cultura pop mundial globalizada, a música “dessa comunidade imaginada chamada Brasil e a as tradições - em grande parte inventadas - da música regional do Rio Grande do Sul (e dos países do Prata)”.
Vale destacar a participação de Bebeto Alves. Após o fim da banda Utopia, em 1977, ele participou do show conjunto “Voltas”, com Carlinhos Hartlieb, apontado como principal influência no sentido de fusão do rock com ritmos regionais. O parceiro teria feito Bebeto perceber que podia fazer uma música que o diferenciasse "em meio a tanta informação e tendências que se prenunciavam na música popular, tanto no Brasil quanto no mundo todo” (vide página 91). A seguir, em 1978 ele participaria do LP coletivo de cantautores “Paralelo 30”, produzido pelo jornalista Juarez Fonseca, com Carlinhos, Cao Trein, Raul Ellwanger, Nelson Coelho de Castro e Nando D’Avila.
Da conclusão da Dirce, vou reproduzir aqui um email do Bebeto Alves:
“Acho que ninguém tinha a pretensão de soar gaúcho. A pretensão era fazer alguma coisa original. Tão original quanto possível, um original que nos permitia pensar que ninguém mais no mundo faria igual. Para isso usamos mão do regionalismo como fundo, como justificativa, mas nunca pensamos em limitar a questão, em estreitar o horizonte, digamos, nesse conceito. Era o nosso passaporte para qualquer tipo de comparação, e por isso, talvez, o conflito com o pessoal da tradição, do nativismo que não se sentia bem com essa ‘mestiçagem’, e a incompreensão dos outros.
O que me faz pensar aqui que uma das coisas mais surpreendentes na Espanha, foi encontrar lá, há pouco tempo, uma campanha para tombar o Flamenco, o resultado de uma sorte de culturas, entre o comportamento cigano ao canto árabe, entre outras. E aqui nós nos 'fresqueando’ de puros, como se a mistura fosse alguma coisa de segunda classe.
Nós estamos mortos e não sabemos, há muito”.
(Bebeto Alves, por email, Dissertação Arthur de Faria, 2012, p.131)
Pronto. Agora que entendemos este sistema de uma canção urbana porto-alegrense, não vamos mais confundir com as canções de festivais nativistas, ou com a música gauchesca de bailes e desfiles tradicionalistas. "Nada a ver".
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