Natalício Cavalo: emprenhado de festa, matou a tradição
*comentário sobre a peça vencedora do Prêmio Braskem em Cena, do 20º Porto Alegre em Cena
A diretora da trilogia festiva da Cia. Rústica, Patrícia Fagundes, preparou a segunda peça da série, Natalício Cavalo, ao lado de atores, atrizes e assistentes, carregando uma cria na barriga. A arte é curiosa. Pois a vida, ao lado da morte, incendeia a faísca poética deste espetáculo, pretensamente regional.
A máxima “se vive de morte, se morre de vida” acompanha a dramaturgia que, quase linearmente, conta a história de Natalício. Desde sua predileção para as lides campeiras, em detrimento dos estudos, passando pelas muitas mulheres que teve e pelos empreendimentos circenses. Estes últimos, constituíram um dos seus maiores feitos. O empreendedor promoveu rodeios que eram vistos como um circo de raso apelo ao público. Por isso era criticado: “Isso não é Tradição!”. E retrucava: “Me chamam de aproveitador, mas até a prefeitura lucrou”.
Esta passagem deixa claro que nosso herói personifica uma identidade complexa. Se estivéssemos como platéia esperando que o personagem agisse de acordo com a pilcha que veste, frustraríamo-nos. Natalício tirou as fraldas no campo, sim. Mas por que motivos seguiria estritamente uma pretensa tradição? Ao atuar na gerência de um espetáculo, sua vivência na cidade falou mais alto .
Cavalo macho
Como “gaúcho macho”, Cavalo emprenhou mulheres e angariou uma penca de filhos. Mas a dramaturgia não celebra este feito como conquista. Põe, sim, elementos que nos fazem questionar a nobreza de seu agir andarilho. Desta forma, a questão feminina vai se descortinando no espetáculo. Seus rodeios apostavam em duas mulheres ginetes como atração principal. Inclusive a cena da gineteada é uma das melhores da peça. Com certeza, a mais divertida.
O feminismo segue pautando no ato a seguir, quando, mais maduro, Natalício Cavalo investe no radialismo. Atendendo a pedidos, nega executar a música “Morocha”, hino do machismo gauchesco. E tasca na vitrola “Morocha, não”, canção-antítese.
As cartas de ouvintes, endereçadas a Natalício, também contrapõem-se a um estereótipo de passado romântico e fantasioso do Rio Grande do Sul. O radialista lia no ar reclames acerca de problemas da urbanização da cidade. E, pasmem, chega a vociferar contra a plantação de eucaliptos no pampa.
O multi-protagonista, interpretado por três atores até a morte, comemorou 13 aniversários na década de 40 do século vinte. Esta localização temporal serviu de mote para a trilha, criada pelo compositor Arthur de Faria. Trazendo sua pesquisa de época, inseriu tangos e marchinhas de carnaval. Assim, evidenciou os entrecruzamentos com os vizinhos platinos e com o Brasil capitaneado pelo Rio de Janeiro. Ao contrário do pretenso puritanismo regional que prefere separar o estado de qualquer referência “estrangeira”.
Amador
Nesta linha, a montagem conta com um telão, onde são projetados vídeos e fotografias. Aparecem gaudérios, cavalos, recortes de jornais, que dão aquela velha impressão atávica de seguir uma tradição. No entanto, no final começam a aparecer os próprios atores, no making of de sua pesquisa em uma fazenda. Fica claro que, no processo, os artistas questionaram e buscaram elementos na fonte, para compor de forma original sua arte e identidade.
Aí está a diferença entre o artista e o amador. Temos muito a aprender com os realizadores de teatro, nós que estamos habituados a cantar em missa, sem mecenas, vulgarizando a música sacra. Estendendo a prática para galpões estilizados, quer sejamos bancários, advogados, ou burocratas em geral, costumamos nos fantasiar de artistas no final de semana, para reproduzir ad infinitum qualquer receita dita remanescente.
Mas é preciso ser profissional para emprenhar a arte. Se a Cia Rústica fosse mero grupo amador, seus esforços não seriam em função de gerar uma peça única, nova. Consultariam algum velho regulamento ou cartilha. Seria como “dar uma” sem compromisso, ou “tirando antes de gozar”. Assim, o regionalismo teria parcas chances de ficar grávido. E sem nova geração, morreria.
A diretora da trilogia festiva da Cia. Rústica, Patrícia Fagundes, preparou a segunda peça da série, Natalício Cavalo, ao lado de atores, atrizes e assistentes, carregando uma cria na barriga. A arte é curiosa. Pois a vida, ao lado da morte, incendeia a faísca poética deste espetáculo, pretensamente regional.
A máxima “se vive de morte, se morre de vida” acompanha a dramaturgia que, quase linearmente, conta a história de Natalício. Desde sua predileção para as lides campeiras, em detrimento dos estudos, passando pelas muitas mulheres que teve e pelos empreendimentos circenses. Estes últimos, constituíram um dos seus maiores feitos. O empreendedor promoveu rodeios que eram vistos como um circo de raso apelo ao público. Por isso era criticado: “Isso não é Tradição!”. E retrucava: “Me chamam de aproveitador, mas até a prefeitura lucrou”.
Esta passagem deixa claro que nosso herói personifica uma identidade complexa. Se estivéssemos como platéia esperando que o personagem agisse de acordo com a pilcha que veste, frustraríamo-nos. Natalício tirou as fraldas no campo, sim. Mas por que motivos seguiria estritamente uma pretensa tradição? Ao atuar na gerência de um espetáculo, sua vivência na cidade falou mais alto .
Cavalo macho
Como “gaúcho macho”, Cavalo emprenhou mulheres e angariou uma penca de filhos. Mas a dramaturgia não celebra este feito como conquista. Põe, sim, elementos que nos fazem questionar a nobreza de seu agir andarilho. Desta forma, a questão feminina vai se descortinando no espetáculo. Seus rodeios apostavam em duas mulheres ginetes como atração principal. Inclusive a cena da gineteada é uma das melhores da peça. Com certeza, a mais divertida.
Foto: Alex Ramirez |
As cartas de ouvintes, endereçadas a Natalício, também contrapõem-se a um estereótipo de passado romântico e fantasioso do Rio Grande do Sul. O radialista lia no ar reclames acerca de problemas da urbanização da cidade. E, pasmem, chega a vociferar contra a plantação de eucaliptos no pampa.
O multi-protagonista, interpretado por três atores até a morte, comemorou 13 aniversários na década de 40 do século vinte. Esta localização temporal serviu de mote para a trilha, criada pelo compositor Arthur de Faria. Trazendo sua pesquisa de época, inseriu tangos e marchinhas de carnaval. Assim, evidenciou os entrecruzamentos com os vizinhos platinos e com o Brasil capitaneado pelo Rio de Janeiro. Ao contrário do pretenso puritanismo regional que prefere separar o estado de qualquer referência “estrangeira”.
Amador
Nesta linha, a montagem conta com um telão, onde são projetados vídeos e fotografias. Aparecem gaudérios, cavalos, recortes de jornais, que dão aquela velha impressão atávica de seguir uma tradição. No entanto, no final começam a aparecer os próprios atores, no making of de sua pesquisa em uma fazenda. Fica claro que, no processo, os artistas questionaram e buscaram elementos na fonte, para compor de forma original sua arte e identidade.
Aí está a diferença entre o artista e o amador. Temos muito a aprender com os realizadores de teatro, nós que estamos habituados a cantar em missa, sem mecenas, vulgarizando a música sacra. Estendendo a prática para galpões estilizados, quer sejamos bancários, advogados, ou burocratas em geral, costumamos nos fantasiar de artistas no final de semana, para reproduzir ad infinitum qualquer receita dita remanescente.
Mas é preciso ser profissional para emprenhar a arte. Se a Cia Rústica fosse mero grupo amador, seus esforços não seriam em função de gerar uma peça única, nova. Consultariam algum velho regulamento ou cartilha. Seria como “dar uma” sem compromisso, ou “tirando antes de gozar”. Assim, o regionalismo teria parcas chances de ficar grávido. E sem nova geração, morreria.
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