Bebeto Alves, devorai-vos

A antropofagia sempre foi o esporte predileto de Bebeto. Os discos dele volta-e-meia propõem quebras de paradigmas e conceitualismos inovadores. E agora ele vem com este CD, “Devoragem”, que almeja traduzir sua mudança para o Rio de Janeiro. Após longa trajetória de milongas, o cara se instalou no centro do samba e do funk brasileiros.


Mas a essência devoradora do uruguaianense Bebeto Alves é antiga. Data mesmo é de 1978, do disco coletivo “Paralelo 30”, no qual gravou a espetacular “De banquetes e jantares” (digestivo o nome...). A faixa do LP é uma mistura de valsa, chamamé, tango e tropicalismo. Soa como rock progressivo, com convenções e climas múltiplos.

De banquetes e de jantares
(Bebeto Alves - 1978)

Como restos de banquetes e de jantares
Como sombra, como tédio
Como uma palavra cansada de surgir
Embriagada, desenganada
Respiro lento e fundo
Trazendo à tona a dor
Respiro lento e fundo
À borda da manhã

Ah! Esse amor que me devora
Ah! Esse amor que me embola
No começo das ruas, dos dias
Em meio às alegrias
Em meio às ilusões
Veja tudo e diga qualquer coisa
Mas não te cales meu coração
Mesmo que sendo a todos
De um futuro o bagaço
Amar é se manter
Mesmo que aos pedaços.


Daí o maluco vem com um disco chamado “Devoragem”, 30 anos depois, o que é sintomático da sua coerência artística. Quer dizer: após anos de gravações de discos de rock, milonga e canções, a salada se refaz. Ele gravou CDs como o “La milonga nova” (2000), que propunha a atualização do gênero, através de recursos eletrônicos e idéias arejadas e contemporâneas. Também interpretou milongas do compositor nativista Mauro Moraes, em performances aciganadas. Ainda releu Mick Jagger em “Blackbagualnegovéio” (2004). Agora, ele grava a pretensão de ser ele mesmo, observando la globalización geral. E de fato brinda-nos novamente com a beleza da originalidade estética.

Eu não conhecia “ao vivo” o Bebeto. Já era, sim, íntimo de seus discos, mas apenas em abril deste ano lhe assisti no Teatro do SESC em Passo Fundo. E foi... p*** que p****!... instigante e perturbador, no mínimo. Ele estava lançando o dito novo cujo. Ainda tocou um sopapo (percussão) e um instrumento de cordas turco, parecido com um alaúde, que eu não sei dizer o nome. Enfim, vestiu seus clássicos de calcinha comestível.

Poeta. Maneiro à beça!
Agora, olho uma carreira de 30 anos, de um artista inquieto, que mantém a virilidade durante todo este tempo e consegue ser fantástico a cada disco. Concluo que Bebeto Alves escreveu história na música brasileira. Pela tangente, foi nativista e roqueiro. Mas não fez parte de movimentos de massa, nem vendeu milhões de cópias alçando-se ao mainstream.

Fiquei pasmo. Ele mantém um ímpeto de guri na criação e na performance de palco. E a novidade é que está com uma música sua na trilha sonora de uma novela (Revelação – SBT). Talvez os amigos radialistas agora rodem seu disco, ou apenas a faixa premiada. Talvez os programas de auditório queiram convidá-lo para um jantar. Talvez a grande imprensa nacional ofereça-lhe um banquete. Indagarão se tem 30 anos de idade, ou é irmão da sua filha star Mel Lisboa. Não perceberão que o fruto está maduro, pronto para a mais requintada degustação.

A verdade é que não temos consciência de nossa condição. Sejamos comunicadores, músicos ou audiência, o Bebeto já nos comeu.

Acesse o site do compositor: http://www.bebetoalves.com.br/.

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