Pastiche gaudério na caçamba
O locutor bradava aos quatro ventos, com a impostação indispensável, que aquele desfile configurava maior importância nas comemorações dos 150 anos do município de Passo Fundo. E justificava que a atividade ali mostrava a cultura da nossa cidade, “desde os índios kaingangues, passando pelos primeiros habitantes (sic), até a miscigenação que formou o gaúcho”. Era a Mostra da Cultura Gaúcha, que desde 1992 traz discursos pseudo-histórico-turístico-pós-modernos.
Naquela tarde de setembro (domingo, dia 17, em 2006), via-se como dificilmente se poderia presenciar, a não ser em uma elucubração estética “kitch”, ou pastiche, a junção fragmentada da cúpula governamental do município, prestigiando um desfile de altas pretensões culturais. Comparo aqui a presença ilustre de tantos contra-partidários, coligados ou não, unidos no mesmo palanque, ao recorte de espaços e tempos, colados em cima de caçambas de caminhão. E justifico o porquê.
O colorido dos políticos em seus “santinhos”, mudando a cada eleição as tintas, assim como suas coligações, são pós-modernos. Destarte a história do Rio Grande do Sul que é contada pela gauderiada. Pois não têm compromisso algum com processos de longa data, nem propõem nada que seja realmente novo, no sentido de se construir algo sólido e duradouro. Podemos ousar dizer que alianças partidárias e gaúchos desfilando no asfalto são pastiche. São compostos por pedaços de referências perdidas num passado e transpostas ao presente em um recorte “à facão”.
Vamos levar em consideração que nosso estado é muito novo para ter construído uma identidade forte, assim como todo Brasil – se formos comparar com o Velho Mundo. Mas na verdade, os povos que aqui habitam, desde antes da ocupação genocida, são bem antigos. O problema é que eles são simbolicamente excluídos da formação cultural de viés gauchesco. Na lógica tradicionalista, o estado tem apenas 200 anos, quando poderia ter mais de 12 mil, desde que os primeiros habitantes indígenas chegaram aqui.
Acredito que não por acaso, os tradicionalistas chamam seus galpões-santuários, os CTGs, de “entidades”. Na tal Mostra da Cultura Gaúcha, uma das “entidades”, como um espírito mundano, defendeu “nossas raízes” (sic), em face da polêmica atual em torno de ritmos gauchescos, que estão sofrendo interferências extra-terrenas. E nessa peleia entre fantasmas e ETs, os humanos presentes na platéia ficaram sem saber onde ficam as almas dos índios, já que nas raízes dessa terra não estariam. O CTG Lalau Miranda mostrou, chorando de orgulho de ser gaúcho, que o primeiro instrumento musical surgido aqui foi o acordeom, trazido por imigrantes italianos em 1829. Também defenderam que a gaita é o instrumento que melhor representa a música tradicionalista, “a música da nossa terra”. Daí os mais distraídos no público ficaram entendendo que antes não existia música no Rio Grande do Sul, nem vida.
Já a “entidade” vencedora da corrida de cavalos e caminhões – tipo regularidade, Cavaleiros do Mercosul, levou aos olhos dos presentes o índio também. Os cavalarianos do asfalto trouxeram pra Avenida 7 de Setembro um recorte dos povos que teriam formado o gaúcho: paulistas pilchados, italianos bem vestidos, espanhóis de origem flamenca, negros reis africanos vestidos de pele de onça, e a pocahontas (!). Quanto à última, explico que desfilou na avenida uma moça vestida de índia norte-americana, com trancinhas e pinturas no vestido, tal qual a personagem daquele desenho da Disney, chamado Pocahontas.
Essa foi a representação estética feita por quem tem legitimidade no nosso município e recebeu cerca de dez mil reais de lambuja, dos cofres públicos. Interpreto como uma ofensa ao passo-fundense essa prática político-tradicionalista. Dar o dinheiro destinado à cultura para poucos grupos que realizam apresentações artísticas tão limitadas como as que ocorreram no último dia 17, é jogar grana no lixo. Ainda mais que essa mostra não cumpre o papel a que se propõe, pois o público é pequeno, o número de pessoas envolvidas nos desfiles reduz a cada ano e não atrai turistas porcaria nenhuma!
Peguem esse dinheiro e usem, por exemplo, para dar suporte à vida e à cultura kaingang, o primeiro povo que habitou essa terra, mas que há 150 anos continua a ser exterminado, física, moral e simbolicamente. Ou comprem livros de história do Rio Grande do Sul para a Biblioteca Municipal, que anda bem defasada. Ou reformem o Teatro Municipal, que está caindo os pedaços. Mas não gastem mais tanta verba pública com esse desfile, que a cada edição parece ficar pior.
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