A condensação da canção latina - resenha do álbum Salvavidas de Hielo de Jorge Drexler
Mon Laferte nasceu no Chile e faz carreira como cantora a partir do México. Esta condição interpõe uma dificuldade quando se quer determinar de onde ela é. Sua música não ajuda a resolver a questão, é amplamente latina, com atitude de diva global. Mas afinal de que importa de onde ela é? Mon Laferte é uma das vozes, ao lado de David Aguilar, Julieta Venegas e Natalia Lafourcade, presentes no novo álbum do uruguaio Jorge Drexler. Esse vive há 22 anos na Espanha e não deixa de reafirmar sua origem em Montevidéu. No entanto, tal pertencimento nunca limitou a circulação do cancionista, que chega ao 13º disco da carreira com mais uma turnê mundial.
O álbum “Salvavidas de Hielo” é baseado em voz e violão, a raiz da canção, mas de forma expandida. Pois várias vozes e sons do instrumento de seis cordas foram gravados em estúdio, remixados e sintetizados, gerando tudo o que se ouve nas faixas, inclusive as percussões. Essa mesma busca por uma matriz simples e usual pautou a criação da capa do disco e das animações de lyric vídeos disponíveis na internet. Tudo foi desenhado com canetas esferográficas azul e vermelha, simulando efeitos de design obtidos digitalmente. À primeira vista, estas escolhas estéticas parecem um passo para trás diante da abundância tecnológica, em busca de alguma essência. Mas se considerarmos a utilização da técnica para sintetizar os sons captados e para editar e difundir videoclipes, o argumento já se comprometeria. Agora, devemos prestar atenção no resultado final, em que as matrizes têm um significado importante e presente, mas não limitaram o produto. Assim como Montevidéu na carreira de Drexler.
Se a ampla circulação da música, por um lado pode banalizar a oferta, por outro oferece uma infinidade de elementos propícios para novas reorganizações e disposições em múltiplos contextos. As canções de Jorge Drexler não são apenas colagens de mil referências (milonga, pop, valsa, cumbia, blues, salsa, eletrônico, bossa, candombe) embaladas em um belo pacote, visando meios bem definidos de audiência global, como a já velha prateleira de world music em uma loja de suvenires no aeroporto de Dubai, hoje substituída gradualmente por playlists congêneres. Diferente, são peças estéticas que utilizam parte do que está aí disponível, rearranjadas de uma forma particular, sem enquadramento de gênero musical ou endereçamento a um nicho de mercado específico. Difundem-se e sensibilizam mundo afora de forma dispersa.
Então por que anotar no título desta postagem o adjetivo "latina" para caracterizar a canção? No prêmio Grammy, o mais importante do mundo, Salvavidas de Hielo concorre na categoria "Best Latin Rock, Urban or Alternative Album". Nota-se que se trata de um enquadramento muito amplo, que extrapola o gênero. E a palavra "Latin", neste contexto anglófono, talvez cumpra um papel segregador. No nosso caso, escrevendo uma resenha em português sobre um álbum em espanhol, desejamos evocar o vocábulo latino para indicar um posicionamento agregador. Pois, não se entende aqui a canção latina (incluso o Brasil) como periférica, mas como uma manifestação cosmopolita da atualidade, inigualável em sua capacidade de amalgamar temporalidades e espacialidades diversas.
São tempos em que tudo se pode agora, tal o título do novo álbum da banda canadense Arcade Fire: Everything Now. Esta última observação é do próprio Jorge Drexler em entrevista para o jornal argentino Clarín. Mas também são tempos em que o uruguaio está lançando Salvavidas de Hielo, um apelo à sensibilidade de forma cândida (às vezes esperançosa) e perspicaz (às vezes cética). Enquanto o diagnóstico necessário do tudo-agora denuncia a condição humana individualizada, a fábula do salva-vidas de gelo chama atenção para as relações, para a alteridade. Pois se o gelo está por se esvair num mar totalizante, ser seu salva-vidas é não estar indiferente (pode-se até resignar-se com o destino fatal, mas não sem senti-lo).
Se a metáfora mais pop para os processos sociais contemporâneos é a da liquidez, tal Zygmunt Bauman pensou, o que fará no mundo um salva-vidas de gelo? Se tudo é (será) líquido, podemos desesperar entrevendo a inconstância, a impermanência, o esvaziamento de toda referência. O salva-vidas poderá sucumbir e acreditar que sua função é inútil ao perceber cubos de gelo derretendo. Mas se insistir em salvaguardar algo, nem que seja por um momento, na inconstância e efemeridade de um acontecimento, poderá manter alguma esperança e utilidade em sua vigilância.
Leia nos links dois textos que nos ajudam a pensar a cultura contemporânea:
Uma cultura que mata os avós (Tau Golin - página 55 do livro NósOutros Gaúchos, 2016)
Circulation (Will Straw - capítulo 26 do livro A Companion to Critical and Cultural Theory)
Mesmo com letras densas, é interessante notar que certo clima solar permeia boa parte do disco; à exceção das dramáticas Asilo, com Mon Laferte, e Despedir a los glaciares, a qual retomaria o tema do salva-vidas de gelo em um contexto de catástrofe natural. Nesta faixa, a metáfora teria a escala maximizada, referindo-se a geleiras inteiras e ao futuro da humanidade. Nela não há a romântica e quixotesca luta contra o inevitável, mas a cética e ancestral filosofia mexicana diante da finitude. Ou seja, não há dualidades fáceis na música de Jorge Drexler.
Nestes fluxos aquáticos do cotidiano atual, com seus vapores sonoros que formam uma imensa nuvem indistinta que soa como ruído sem um filtro amigo, a canção latino-americana circula. O novo álbum de Jorge Drexler é um cristal de neve que se forma em meio a todo este universo aquoso, em um dia de sol. Fractal. No entanto, ainda que se expanda e almeje salvar o mundo inteiro, a efemeridade dos três ou quatro minutos de duração segue incontornável. O que podemos fazer? Conforme sugere a canção (sem importar se estamos na Espanha, no México, no Uruguai, no Brasil...): "Levantemos nuestra copa por cada causa perdida".
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Ouça abaixo uma playlist exclusiva, criada para esta postagem, com as faixas de Salvavidas de Hielo intercaladas com canções de outros artistas que participaram do álbum, ou que têm alguma relação com a música de Jorge Drexler, a exemplo de Eduardo Mateo e Alfredo Zitarrosa:
Leia outros textos sobre Jorge Drexler aqui no blog:
O hedonismo poético de Jorge Drexler
Guia musical do veranista no Uruguai
O álbum “Salvavidas de Hielo” é baseado em voz e violão, a raiz da canção, mas de forma expandida. Pois várias vozes e sons do instrumento de seis cordas foram gravados em estúdio, remixados e sintetizados, gerando tudo o que se ouve nas faixas, inclusive as percussões. Essa mesma busca por uma matriz simples e usual pautou a criação da capa do disco e das animações de lyric vídeos disponíveis na internet. Tudo foi desenhado com canetas esferográficas azul e vermelha, simulando efeitos de design obtidos digitalmente. À primeira vista, estas escolhas estéticas parecem um passo para trás diante da abundância tecnológica, em busca de alguma essência. Mas se considerarmos a utilização da técnica para sintetizar os sons captados e para editar e difundir videoclipes, o argumento já se comprometeria. Agora, devemos prestar atenção no resultado final, em que as matrizes têm um significado importante e presente, mas não limitaram o produto. Assim como Montevidéu na carreira de Drexler.
Se a ampla circulação da música, por um lado pode banalizar a oferta, por outro oferece uma infinidade de elementos propícios para novas reorganizações e disposições em múltiplos contextos. As canções de Jorge Drexler não são apenas colagens de mil referências (milonga, pop, valsa, cumbia, blues, salsa, eletrônico, bossa, candombe) embaladas em um belo pacote, visando meios bem definidos de audiência global, como a já velha prateleira de world music em uma loja de suvenires no aeroporto de Dubai, hoje substituída gradualmente por playlists congêneres. Diferente, são peças estéticas que utilizam parte do que está aí disponível, rearranjadas de uma forma particular, sem enquadramento de gênero musical ou endereçamento a um nicho de mercado específico. Difundem-se e sensibilizam mundo afora de forma dispersa.
Então por que anotar no título desta postagem o adjetivo "latina" para caracterizar a canção? No prêmio Grammy, o mais importante do mundo, Salvavidas de Hielo concorre na categoria "Best Latin Rock, Urban or Alternative Album". Nota-se que se trata de um enquadramento muito amplo, que extrapola o gênero. E a palavra "Latin", neste contexto anglófono, talvez cumpra um papel segregador. No nosso caso, escrevendo uma resenha em português sobre um álbum em espanhol, desejamos evocar o vocábulo latino para indicar um posicionamento agregador. Pois, não se entende aqui a canção latina (incluso o Brasil) como periférica, mas como uma manifestação cosmopolita da atualidade, inigualável em sua capacidade de amalgamar temporalidades e espacialidades diversas.
São tempos em que tudo se pode agora, tal o título do novo álbum da banda canadense Arcade Fire: Everything Now. Esta última observação é do próprio Jorge Drexler em entrevista para o jornal argentino Clarín. Mas também são tempos em que o uruguaio está lançando Salvavidas de Hielo, um apelo à sensibilidade de forma cândida (às vezes esperançosa) e perspicaz (às vezes cética). Enquanto o diagnóstico necessário do tudo-agora denuncia a condição humana individualizada, a fábula do salva-vidas de gelo chama atenção para as relações, para a alteridade. Pois se o gelo está por se esvair num mar totalizante, ser seu salva-vidas é não estar indiferente (pode-se até resignar-se com o destino fatal, mas não sem senti-lo).
Se a metáfora mais pop para os processos sociais contemporâneos é a da liquidez, tal Zygmunt Bauman pensou, o que fará no mundo um salva-vidas de gelo? Se tudo é (será) líquido, podemos desesperar entrevendo a inconstância, a impermanência, o esvaziamento de toda referência. O salva-vidas poderá sucumbir e acreditar que sua função é inútil ao perceber cubos de gelo derretendo. Mas se insistir em salvaguardar algo, nem que seja por um momento, na inconstância e efemeridade de um acontecimento, poderá manter alguma esperança e utilidade em sua vigilância.
O último verso da primeira faixa do disco, Movimiento (veja o videoclipe abaixo), reforça esta ideia: “Se quieres que algo se muere/ déjalo quieto”. A canção é uma daquelas densas, em que Drexler proporciona uma reflexão profunda, como se defendesse uma tese para amplo consumo, embora o compositor não acredite que sua música carregue uma mensagem, mas que seja objeto fractal de inúmeras e inconstantes leituras. Bom, se esta é uma das potencialidades da música popular, o cantautor uruguaio desenvolve-a muito bem, o que já havia provado nas décimas de Milonga del moro judío (Eco, 2004), por exemplo.
Movimiento nos diz que o homem desde os primórdios circula pelo mundo fazendo história. Mas sabemos que, na atual e desigual sociedade tecnológica, o ir e vir tornou-se uma questão mais saliente. A imigração está no noticiário diariamente, a liberdade de informação nem tanto. Os nacionalismos reativados pautam xenófobos, racistas e lunáticos. No sul do Brasil, lugar onde pobres europeus fizeram morada, seus descendentes desprezam índios e caboclos que cederam as terras para seus avós. Antagonizando este tipo de atitude e percepção emergente no mundo todo, Jorge Drexler canta: “Yo no soy de aqui, pero tu tampoco... de todos os lados un poco”.
Leia nos links dois textos que nos ajudam a pensar a cultura contemporânea:
Uma cultura que mata os avós (Tau Golin - página 55 do livro NósOutros Gaúchos, 2016)
Circulation (Will Straw - capítulo 26 do livro A Companion to Critical and Cultural Theory)
Mesmo com letras densas, é interessante notar que certo clima solar permeia boa parte do disco; à exceção das dramáticas Asilo, com Mon Laferte, e Despedir a los glaciares, a qual retomaria o tema do salva-vidas de gelo em um contexto de catástrofe natural. Nesta faixa, a metáfora teria a escala maximizada, referindo-se a geleiras inteiras e ao futuro da humanidade. Nela não há a romântica e quixotesca luta contra o inevitável, mas a cética e ancestral filosofia mexicana diante da finitude. Ou seja, não há dualidades fáceis na música de Jorge Drexler.
Nestes fluxos aquáticos do cotidiano atual, com seus vapores sonoros que formam uma imensa nuvem indistinta que soa como ruído sem um filtro amigo, a canção latino-americana circula. O novo álbum de Jorge Drexler é um cristal de neve que se forma em meio a todo este universo aquoso, em um dia de sol. Fractal. No entanto, ainda que se expanda e almeje salvar o mundo inteiro, a efemeridade dos três ou quatro minutos de duração segue incontornável. O que podemos fazer? Conforme sugere a canção (sem importar se estamos na Espanha, no México, no Uruguai, no Brasil...): "Levantemos nuestra copa por cada causa perdida".
Ouça abaixo uma playlist exclusiva, criada para esta postagem, com as faixas de Salvavidas de Hielo intercaladas com canções de outros artistas que participaram do álbum, ou que têm alguma relação com a música de Jorge Drexler, a exemplo de Eduardo Mateo e Alfredo Zitarrosa:
Leia outros textos sobre Jorge Drexler aqui no blog:
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Guia musical do veranista no Uruguai
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