Um quê de Giancarlo Camargo e Hique Barboza - resenha do disco Devaneios


Hique escreve versos como quem vai ali na cozinha buscar uma água. São anotações corriqueiras, que expressam sua verdade mais imediata. Letras que vão preenchendo os dias, de forma efêmera, oferecendo um repertório diverso, entre saudar o amigo Victor ali na praça, o amanhecer e o madrugar. Ao tornarem-se música, com as melodias de Gian, quase assumem um caráter mais permanente. No entanto, a decisão de produzir o álbum duplo, Devaneios, com 28 canções, dilui a importância de cada uma e mantém acertadamente a qualidade do gesto despretensioso e cotidiano de versar e cantar.

Esta é a principal característica do disco, assinado pelos artistas citados informalmente no primeiro parágrafo: Giancarlo Camargo e Hique Barboza. Outra qualidade está nos rastros da cultura local que vão ressoando durante a audição. Gravado e lançado no norte do Rio Grande do Sul, Devaneios deixa transparecer algumas sutilezas. Materializa em fonogramas algo não sistematizado, não transformado em imagem, que ainda não compõe a coleção de um museu. O sotaque de Passo Fundo, por exemplo. Aquele final de “leite” pronunciado com “e” mudo. Ou gírias e expressões como “e tenho dito”, ou “atracadito, no más” não exclusivas daquela região, mas emergentes na fala coloquial dos nossos dias, como forma de afirmação cultural regionalizada.

Acesse aqui a página de Giancarlo Camargo.

Há no disco bastante referência ao gauchesco. Mas ao invés de pegarmos este elemento familiar para estamparmos um selo de música gaúcha, que tal valorizarmos o que há além, mais fora da curva? Afinal, nem todo rock é igual e nem toda “música gaúcha” é igual. Para perceber a autenticidade de Devaneios, no meio de vasta oferta cultural que vem do mundo, e, mais difícil ainda, no meio do que a própria indústria local produz, é preciso atenção e desprendimento.

O álbum foi gravado na terra natal de Yamandu Costa com músicos virtuoses, como Gabriel Selvage (violão), Ghadiego Carraro (contrabaixo) e Augusto Baschera (guitarra na faixa “Nessa canção” - um dos melhores arranjos dos dois discos). Vale também destacar “Passo da infância”, canção que o baixista Everton Rosa preenche a harmonia inteira, ecoando um quê derivado de outros conterrâneos, como Gringo Saggiorato e Alegre Corrêa, músicos reconhecidos internacionalmente.

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Agora, na maior parte das faixas, a simplicidade é assumida e compõe o tom geral de cotidianidade, de um tocar entre amigos. Neste sentido, há participações de compositores de outras paragens sulinas: Zé Caradípia e Zelito Ramos. Afinal, o que justifica o disco é o encontro entre letras e inspiradas melodias como a de “Nosso jeito”, do verso: “sou mais um traste estaqueado em meu galpão”, ou da de “Madrugadas”, do verso “cantando milongas que chegam dizendo histórias”.

O melodista Gian é ator. Lembro das empulhas do personagem diabo, na peça "O Ferreiro e a Morte", o qual interpretou nos anos dois mil por todas as praças do estado e em diversos lugares do Brasil, com o grupo Viramundos. Reparando bem, aquela escola está presente em sua interpretação. Notamos em faixas como “Amanheceu, milonga” e “Nessa canção” uma dicção enfática e aberta, às vezes dúbia e fatal, que complexifica o sentido dos versos cantados. Uma certa habilidade de pronunciar ligeiramente as palavras que vai revelando a personalidade do artista e tocando mais fundo.

Para encerrar este comentário, retomamos o primeiro parágrafo, em que se havia referido ao amigo Victor. Trata-se dos versos da canção “Passo da Infância” do disco 2. Uma evocação, sem berrar aos quatro ventos, mas conversando de forma íntima, com Victor Matheus Teixeira. Ora celebrado como herói, em datas especiais do município, Teixeirinha tem na música de Gian e Hique um reconhecimento de quem também dá as caras na praça, e vem acompanhando o desenrolar do cotidiano, ombro a ombro.

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