Tchê music - fracasso mercadológico e potencial cultural desperdiçado
Neste final de semana o jornal Zero Hora de Porto Alegre (RS) publicou reportagem bem completa sobre a tchê music, assinada pelo repórter William Manske. Este blogueiro aqui foi uma das fontes consultadas, mas da longa entrevista que concedi apenas dois trechos foram aproveitados. Por isso, para quem se interessa pelo assunto, reproduzo abaixo o bate-bola na íntegra.
ZH - Como você definiria a tchê music?
Poderia ter sido um movimento cultural permanente, tivesse prevalecido a socialização e o dançar sem preconceito. Mas acabou sendo uma tentativa frustrada de fabricar sucesso nacional, em termos de mídia e mercado fonográfico, a partir de um “colorido” regional.
ZH - Esse estilo poderia ser visto como a apropriação da música gaúcha pelo público jovem?
Eu fazia faculdade em Passo Fundo em 1999 e estava na plateia da gravação do disco “Tchê Music ao vivo”, no ginásio do colégio IE. Procurava diversão. Lembro que havia no público outros jovens super inseridos no meio cetegista, e outros que eram fãs apaixonados pelo grupo Pala Velho. Ao contrário deles, não me sensibilizei por aquele espetáculo. Ficou para mim a sensação de que era algo artificial. Pois nunca tinha visto aqueles artistas na minha frente e já tinha uma parafernália gigante para gravar o show. Fiquei desconfiado como quem pensa: “tão querendo me vender o quê?”. Naquela ocasião, vi pouca gente dançar, o que viria a ser um ponto forte da tchê music, na mistura com o maxixe e outros ritmos. Então, acredito que houve mais uma apropriação do marketing sobre algo que estava ainda incipiente no público jovem. Quiseram transformar algo que envolvia o público de maneira ativa, por viés da dança, em um produto pronto pra ser consumido passivamente. Naqueles anos 1990 houve um desprendimento, uma certa rebeldia, uma nova tendência sendo criada, que aliou a espontaneidade e a diversão. Pois a juventude sempre frequentou CTGs e bailes, dançando e tocando de acordo com a cartilha tradicionalista. Mas a coisa não fluiu, porque, por um lado, o mercado tratou logo de rotular, e por outro, o MTG tratou de censurar. Em decorrência, o que poderia ter se consolidado como um movimento da juventude, de releitura da tradição, foi completamente minado.
ZH - Na época que surgiu o movimento, em 1999, o MTG orientou os CTGs a não contratarem os grupos de tchê music. Acusavam os artistas de deturparem as tradições gaúchas. Segue um trecho de um reportagem de Zero Hora publicada em 22 de dezembro de 1999:
No site oficial do MTG (www.mtg.org.br), um editorial assinado pelo vice-presidente da entidade, Manoelito Savaris, orienta os tradicionalistas a respeitarem a Carta de Princípios do movimento, que condena o abandono da indumentária gaúcha e o uso dos CTGs para a divulgação de estilos musicais que agridam os princípios da autêntica música gauchesca.
“O CTG que necessitar fazer a contratação de conjunto musical que distorça a música, que despreze a pilcha ou que use de recursos próprios de culturas alienígenas para obter lucro deve pensar se não está na hora de trocar de nome e de finalidade”, sugere o texto do MTG na Internet.
“O conjunto musical que envereda por este caminho novo (a tchê music) se submete a um bem planejado esquema de marketing, não se importando em misturar ritmos autênticos gaúchos com outros que nada têm de tradicionais, assim como não vêem problemas em se apresentar usando uma vestimenta em que a bombacha vira calça larga, a bota envergonhada esconde o cano na tal calça larga, o típico lenço do gaúcho é aposentado, a guaiaca, se usada, fica escondida sob camisa desleixadamente largada por cima da calça larga”, diz o editorial intitulado Tchê Music.
Como você avalia essa tensão entre a tchê music e os tradicionalistas? Houve exagero de algum lado?
Só vejo exagero do lado dos tradicionalistas, quando normatizam a forma de se vestir, de se comportar e principalmente quando querem definir quais são os ritmos autênticos do Rio Grande do Sul. Centro cultural não é quartel. Os dirigentes do MTG parecem misturar as coisas, enquanto há muitas incongruências e contradições em suas regras. Por exemplo: por que a milonga, derivada de influências europeias e africanas, é mais gaúcha que a vanera misturada com maxixe? O MTG cumpre um papel interessante de valorização de algumas manifestações culturais regionais. Mas no século XXI não faz mais sentido querer impor limites a processos que são cada vez mais fluidos, como a criação artística e a identidade cultural.
ZH - Ainda em 1999, o conselho estadual de cultura do Rio Grande do Sul declarou que um projeto submetido a lei de incentivo à cultura, que era um pedido de apoio para a realização de uma série de shows de tchê music pelo Rio Grande do Sul e outros Estados, como "irrelevante" e qualificou o estilo como mais um exemplo de "bestialização da cultura nacional".
Não vou defender o mérito do projeto em questão. Não acho que um projeto ligado ao mercado, como foi o lançamento do disco “Tchê Music ao vivo”, tenha que receber recursos do governo. Mas acho complicada a qualificação do Conselho como “bestialização”, pois é carregada de preconceito. Talvez esta decisão tenha derivado da ideologia normativa e segregadora de tradicionalistas que assumem cargos em instituições públicas. Ou de uma compreensão hierárquica da cultura, por parte de conselheiros que julgam valor e comparam manifestações como mais cultas e menos cultas.
Clique aqui para ler a matéria publicada no caderno .DOC de ZH. |
ZH - João, existe alguma dicotomia aqui no Estado entre aquele militante tradicionalista e o artista que resolveu fazer música regional?
Certa dicotomia sempre houve, desde o dia em que alguém quis definir pela primeira vez “o que é” e “o que não é” próprio da região. Em contraponto, sempre apareceu um antagonista libertário. Já houve tempos de infindáveis brigas entre tradicionalistas (mais conservadores) e nativistas (mais progressistas) sobre questões como: “o chamamé é ou não é um ritmo tradicional do Rio Grande do Sul?”, ou “Homem pode dançar música gaúcha usando brinco?”. Mas a dualidade pautou mais a mídia e as decisões dos congressos do MTG do que a produção musical no estado, que seguiu paralelamente gerando uma variedade de expressões. Muitas delas se consagraram, a exemplo do investimento de cancionistas na milonga, elevando-a a um gênero contemporâneo. Bebeto Alves é um deles, que gravou, na mesma época da tchê music, o álbum “La Milonga Nova” (2000) dialogando abertamente com a faceta festiva da música brasileira. Seu trabalho mais recente se chama “Milonga Orientao” (2014), em que incorpora explicitamente componentes da origem moura do gênero para cantar a atualidade. Podemos citar Mauro Moraes, compositor prolífico de festivais, que produz há décadas milongas que tratam de assuntos campeiros com um tanto de sofisticação harmônica e elegância melódica que certamente são tributárias da MPB. Já Vitor Ramil, desde o disco Ramilonga (1997) vem investindo no apuro formal do gênero, em intercâmbio com argentinos e uruguaios, e desenvolveu uma linguagem que já se legitimou como um parâmetro para nós gaúchos e para o mundo. Acontece que, ao contrário da tchê music, para estes compositores citados e para outros, as regras dos tradicionalistas não importam. Tampouco as do mercado. Eles atuam em outros circuitos, são artistas independentes. Ao mesmo tempo, fazem música regional, ou no mínimo contribuem para ela.
ZH - Na sua avaliação, a tchê music pendeu mais para o comercial, em tentar emular o axé, do que a qualidade artística?
A qualidade artística é um tanto relativa. Podemos ouvir uma pessoa humilde, nos rincões mais profundos, cantar desafinada uma cantiga antiga de duas notas, e considerar aquilo da maior qualidade, levando em conta o folclore. Na atualidade, há artistas pop que trabalham mais a performance e/ou o envolvimento direto do seu público, do que a música no sentido formal. Essas expressões possuem qualidades estéticas, culturais e sociais que extrapolam a teoria musical. É nesse tipo de expressão que se enquadraria a tchê music. Mas talvez o MTG tenha contribuído para inibir a espontaneidade da dança, uma qualidade importante que propiciava a participação na construção daquela tendência. Cada passo novo criado no salão continha a iniciativa do público. Talvez o marketing agressivo também tenha contribuído para dispersar a juventude que começava a se apropriar deste tipo de expressão cultural de forma criativa e independente.
ZH - Vez ou outra, a gente vê ritmos regionais emplacarem no Brasil todo, nem que seja por 15 minutos. Por exemplo o calipso, axé, forró, entre outros. O que faltou para a tchê music emplacar com mais força no país?
Pra quem acredita que a receita de fabricar hits na indústria fonográfica é infalível, talvez tenha faltado investimento. Percebeu-se na época que a tentativa era de vender milhares de cópias de discos e alimentar diversas mídias com celebridades instantâneas, partindo de uma música com referências no Rio Grande do Sul. O parâmetro mercadológico naquele final dos anos 1990 era o grupo É O Tchan, da Bahia. Hoje é o sertanejo universitário, de origem mais pulverizada entre São Paulo, Goiás e Mato Grosso do Sul.
ZH - Se a tchê music tivesse estourado por todo o Brasil, teria sido proveitoso para os demais músicos regionalistas do Estado?
Imagino que só para os que seguissem a mesma linha. As inúmeras outras vertentes de música regional provavelmente seguiriam paralelamente suas carreiras. Isto porque um sucesso desses, em que a exposição midiática é mais importante do que a arte, não comunica tanto sobre a cultura regional na qual ela se baseia, do que comunica valores midiáticos, como o entretenimento, a beleza dos cantores, o humor ou o romantismo das letras. Se formos prestar atenção nos sucessos efêmeros deste porte no Brasil, todos terão estas características que se relacionam mais com a cultura internacional popular do que com a especificidade regional.
ZH - Na sua opinião, é possível algum dia um estilo musical gaúcho estourar em todo o país assim como o axé ou o calipso? O que seria necessário para isso?
Pode ser possível. É uma questão mercadológica, que tem seus fluxos. Amanhã quem sabe qual será a moda? Vale lembrar que o Rio Grande do Sul já teve um sucesso nacional desse tipo com o Teixeirinha. Ele vendeu muitos discos e lotou salas de cinema com seus filmes, vestindo bombachas e cantando o gaúcho. Mas se vamos comparar a tchê music ao axé e ao calipso, temos que considerar que estes estilos do Nordeste e do Norte do Brasil partiram de movimentos culturais com base social. Os expoentes destes gêneros na mídia nacional são versões trabalhadas mercadologicamente de manifestações culturais importantes que envolvem milhares de pessoas nos estados em que foram criadas. O axé está ligado ao carnaval baiano, patrimônio nacional. O calipso se sustenta a partir da cooperação entre comunidades do norte que promovem festas e shows de tecnobrega. Será que temos um lastro social significativo comparável aqui no sul do país? As danças de competição de CTGs, que engajam centenas de jovens no estado, poderiam significar esta base. Mas talvez seja difícil uma expressão cultural ganhar relevo nacional enquanto seguir sendo censurada ou se auto-censurando.
ZH - Qual foi o grande legado da tchê music?
Primeiro, a tchê music colaborou por colocar em pauta, mais uma vez, e questionar a rigidez das concepções culturais hegemônicas do Rio Grande do Sul. Não foi a primeira vez. Cancionistas nativistas cantando em espanhol no palco de festivais, por exemplo, já haviam provocado a ira dos fundamentalistas do folclore gaúcho. Em episódio mais recente, uma juíza em Santana do Livramento também desencadeou um debate que acabou com um incêndio criminoso em um CTG, por decidir que um casal homossexual iria se casar naquele local. A cada ano, uma nova polêmica reacende, quando alguém quer se expressar livremente fazendo referência ao gauchismo. Os “aiatolás da tradição” (expressão de Gilmar Eitelwein e Juarez Fonseca) indignam-se e se revelam intolerantes. Segundo, acho positivo a tchê music ter investido na dança de forma mais sensual. Estamos no século da diversidade, não cabe mais escolher uma faceta restrita das culturas que transitam em um território e elevá-la à representação unívoca. Isto beira o fascismo. Nesta linha de raciocínio, a tchê music colaborou para diversificar as expressões musicais do sul do Brasil, daquelas que tem espaço na mídia.
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