Borghettinho quarteto prepara trabalho inédito

 Tem música que é fabricada e outra que é artesanal
O anfitrião veste uma das variações de seu traje costumaz, que o identifica como símbolo de um soar moderno em contexto regional. Alpargatas, bombachas estreitas, camiseta lisa sem insígnias numerais nem animais. O conjunto em si forma um índice, coroado naquela tarde de verão não pelo tradicional chapéu de aba larga, mas por um boné tipo italiano que cumpria a mesma função no jogo de esconder sua risada meio tímida e prender em arco as longas mechas castanhas que caem sobre seus ombros.

Falante, Renato Borghetti, 52 anos, abre as portas da fábrica de gaitas de oito baixos como quem mostra algo precioso, que deve ora lhe tirar o sono, pelo meticuloso trabalho que envolve, ora lhe embalar, pela perspectiva futura que alimenta. Fosse ainda um sonho, poderíamos não apostar nossas fichas (como aconteceu com muitos) em grandioso projeto. Mas há dois anos a Fábrica de Gaiteiros está funcionando na beira do Rio Guaíba em Barra do Ribeiro (RS), a 60 quilômetros de Porto Alegre.

Diante do fechamento de quase todas as fábricas de acordeom no sul do país nos últimos anos, a pequena e idealizada indústria cumpre agora um enclave fundamental na perpetuação do instrumento de fole na tradição musical do Rio Grande do Sul. O projeto inclui o processo completo de formação de acordeonistas, desde a confecção das gaitas até o ensino da música. As aulas são gratuitas nas cidades de Bagé, Barra do Ribeiro, Butiá, Guaíba, Porto Alegre, Tapes e São Gabriel. Cada aprendiz tem direito a levar pra casa uma gaitinha por tempo determinado, como se alugasse um livro na biblioteca. A procura é grande. Há fila de espera para ocupar uma das 200 vagas ofertadas atualmente. Cada escola possui um professor, que atende crianças de 7 a 15 anos, em aulas em grupo e individuais.

Conhecendo as etapas da produção do instrumento de botões, duas caixas retangulares de eucalipto e um fole de papelão, afasta-se qualquer ideia de serialização ou fordismo. Ali na beira do Rio, fase a fase, Borghettinho e equipe cuidam com esmero artesanal do processo de criação. Inicia na confecção de cada máquina utilizada para corte, prensa, etc. Fabricam tudo, não faltassem temporariamente as palhetas, que hoje tem que importar da Itália. Mas em breve garantem que irão adquirir um novo artefato que permitirá a feitura destas peças sensíveis, responsáveis pela afinação das gaitas.

Cidade Baixa (Porto Alegre RS)
Nossa visita ao local ocorreu na tarde do dia 20 de janeiro para acompanhar a gravação do novo trabalho discográfico do quarteto de Renato Borghetti. Presenciamos naquele ambiente da fábrica uma amostra dos 11 dias de confinamento artístico. Ao lado do gaiteiro cabeludo, os músicos parceiros, Daniel Sá (violão), Pedrinho Figueiredo (flauta e saxofone) e Vitor Peixoto (piano), técnicos de som e a equipe do diretor Rene Goya Filho. Imersos naquele universo que é mais artesanal do que fabril, dedicavam-se na criação e registro de 12 novas faixas que irão compor o trabalho audiovisual Gaita na Fábrica.

Desde 2007 sem lançar algo inédito (o último havia sido Fandango!), Borghettinho escolheu um repertório de composições suas e do quarteto, incluindo novos arranjos para temas de Jacob do Bandolim, Alegre Corrêa e Esteban Morgado, e para o clássico argentino Alfonsina y el mar (Ariel Ramírez/Félix Luna). Como pudemos ouvir naquela tarde de visita, na amostra já mixada que o grupo exibiu para os convidados, serão faixas longas, nem sempre com predomínio da gaita, mas dividindo vozes e improvisos entre os quatro instrumentistas.

O disco todo será baseado só no quarteto. Os arranjos não incluem outros instrumentos, nem mesmo overdub dos integrantes. As performances são captadas em gravações em parte ao vivo, principalmente os improvisos em conjunto, tipo "valendo", para melhor aproveitamento no vídeo. Este processo, motivado pelas necessidades e características do produto audiovisual, deve contribuir conferindo um resultado mais orgânico à sonoridade do quarteto, conforme observou o jornalista Paulo Moreira, presente na visita. Também poderá mostrar de forma transparente o entrosamento de anos de estrada tocando juntos.

Saiba mais sobre a biografia do artista no livro de Márcio Pinheiro.

As sessões estavam sendo registradas no auditório da fábrica, projetado pela filha do músico, Emily Borghetti, e com tratamento acústico desenvolvido pelo também produtor do disco, Pedrinho Figueiredo. A direção do filme é de Rene Goya, com produção de conteúdo da Estação Filmes e captação da Tango, enquanto a produção executiva fica ao cargo de Marcos Borghetti. O projeto tem apoio técnico de Harman do Brasil, que forneceu equipamento de som e luz. Já a Fábrica de Gaiteiros tem apoio da Celulose Riograndense.

O produto final deverá ser reproduzido em série, em alguma outra fábrica, em mídias de plástico que poderão oferecer conteúdo em áudio e vídeo (por enquanto chamamos isto de DVD). Ao mesmo tempo, o empenho e o registro deste momento único e criativo deverá gerar diversas maneiras de fruir. Por qualquer forma que tiver acesso, incluindo via rede, o ouvinte entrará em contato com o resultado de uma empreitada meticulosa e sensível. Não se trata de um produto formatado para ampla adesão do público em forma de venda de milhares de exemplares. Borghettinho até já experimentou este boom mercadológico que requer ampla produção fabril em alguma indústria de larga escala. Seu primeiro álbum foi um fenômeno na música instrumental brasileira, vendeu mais de 100 mil cópias em 1984. No entanto, depois do empurrão inicial, sua carreira consolidou-se não nesta lógica industrial, mas no capricho manufatureiro que produz momentos inigualáveis.

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