O Raul



Os dez anos que morei em Passo Fundo (RS) legaram à minha formação pessoal e profissional preciosos vincos que hoje fazem parte do que sou. Dentre tantas referências e experiências, sejam familiares ou de amizade, destaco neste momento uma pessoa em especial que é o famoso Raul.

No início, chegando de Porto Alegre, achei que o tal do Raul era uma lenda. Todos os músicos da cidade falavam nele. Pensei ser um Deus, talvez. Logo entrei em contato, em terceiro grau, com o compositor e colecionador de discos tão admirado na urbe. Estávamos em 2003. Ele me enviava e-mails sobre músicos da região que faziam sucesso no centro do país e na Europa (como Alegre Corrêa e Dudu Trentin) e cópias de CDs à redação do jornal Diário da Manhã, no qual eu trabalhava e produzia o caderno DM Cultura. Aí veio minha segunda impressão sobre o sujeito: um ermitão. Como podia um músico não aparecer nos barzinhos pra dar uma canja, tomar uma cerveja e contar causos? Fiquei intrigado, neste início, como a maioria de seus amigos-fãs.

Raul é responsável pela comunicação e historiografia de uma geração de músicos que resolveu tocar MPB no interior do estado do Rio Grande do Sul, por idos dos anos 1970, na contramão do gauchismo e dos bailes populares que dominavam a cena na época e continuam fortes hoje. Diferente dos seus amigos que foram mundo afora serem músicos de profissão, Raul foi ser funcionário público. Mas nunca deixou a música. Sempre compôs suas canções e intermediou contatos da classe artística.

Confesso minha identificação com este cara por razões musicais e de carreira. Primeiro, seu gosto pela MPB, MPG e música instrumental são cativantes, ainda mais porque ele o divide com todos, fornecendo cópias de seus discos. Segundo, porque ele não é o exemplo de músico bem-sucedido que o jovem aspirante quer se espelhar. E eu não queria mesmo largar o jornalismo e abraçar exclusivamente a música. Queria ver alguém como o Raul, com uma carreira de vida brilhante: dois filhos, funcionário público exemplar e uma referência na música. Tudo feito no interior do estado do Rio Grande do Sul, através de contatos por correio, telefone ou e-mail, de dentro de uma casinha branca na Rua Benjamin Constant, com o cão Paco na soleira da porta.

Raul trouxe Viena para nós apreciarmos nos parcos palcos da cidade, quando dos shows de Alegre Corrêa na terra natal (a produção sempre foi do Osvaldir, mas a culpa é do Raul). Ele aproximou pianistas, bateristas, baixistas e guitarristas de referências brasileiras, incentivando a formação de grupos instrumentais. Preocupou-se com todos, enquanto todos tentavam entender o porquê dele não tocar em público e não gravar um disco com suas composições.

O CD
Chegou 2008 e a novidade alastrou-se nos contatos virtuais e nas mesas dos botecos da Passo Fundo de hoje. “Raul está gravando seu disco no Rio de Janeiro, com a produção de Dudu Trentin”. Foi uma bomba no meio cultural. Mas restavam indagações: será que ele largou o serviço público? Será que vai fazer um show de lançamento? Vai me convidar pra tocar com ele? Um alvoroço se criou. E o “velho” Raul (velho pelas atitudes bem medidas) explicou à gleba sua façanha, sem atender às ligeiras expectativas, mas apaziguando os ânimos e convencendo sobre a motivação de seu projeto. Raul gravou para posteridade, ou melhor, para a prosperidade, do seu trabalho e da música brasileira. Em tempos de cabelos descoloridos artificialmente, o passo-fundense coloca em cena seu cabelo grisalho, descolorido pela vivência apaixonada de audição e criação. O seu disco é o resultado de uma vida, não de uma experiência tóxico-etílica de um mês em um sítio alugado por uma gravadora, como se vê por aí.

Não vou nem comentar as lindas faixas impressas nesta mídia fadada ao desaparecimento que é o CD, mas disponíveis no revolucionário My Space. Vou sim comentar que o vinil, principal fonte de conhecimento do nosso amigo compositor, está voltando. Também irei concluir que o Raul Boeira hoje está casado com a Márcia Barbosa, doutora das letras e dona de um coração grande que acolhe toda a MPB, zelando pelos conterrâneos gêmeos, em um êxtase que a vida só experimenta através da arte.

Pra compartilhar desta cousa toda que nos faz felizes: www.myspace.com/raulboeira

Comentários

  1. pimentel18/5/09

    Conheço o Raul desde julho de 1986... fez o Curso de Direito (no tempo certo ... eu levei nove anos), sem nunca repetir qualquer cadeira, "só por deleite", expressão minha. A história do Raul só se compreende pelo viés do sentimento ... convicto, puro, transparente, profundo, simples (sem apego materiais) ... a MPB arrebatou o Raul sob o protesto de todas as convenções.

    José Cezar Pimentel da Silva

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  2. João,
    já te disse que fiquei muito comovida com o teu comentário, mas creio que nem consegui explicar por quê. Explico agora: tu descreves com precisão e rara sensibilidade o Raul e sua trajetória, e a tua generosidade reside não no fato de dizeres inverdades sobre um amigo, e sim no fato de reconheres aquilo que o próprio Raul, na sua modéstia e simplicidade, não admite.
    Um abraço carinhoso.
    Márcia Barbosa

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